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DOC ÍNDEX: PROGRAMA KINO-DOC NA UNIVERSIDADE DO PORTO

No próximo mês de Março, com curadoria do KINO-DOC, serão exibidos na Reitoria da Universidade do Porto nove filmes documentais que por motivos diversos tiveram a sua exibição proibida. Todas as sextas-feiras do mês à noite.

 

Dia 6, 21:30

LES STATUES MEURENT AUSSI (1953, 30 min.), de Alain Resnais, Chris Marker, Ghislain Cloquet

CATEMBE (1965, 48 min.), de Faria de Almeida

GENERAL IDI AMIN DADA: A SELF-PORTRAIT (1974, 1h30), de Barbet Schroeder

 

Sessão tripla com filmes centrados na África subsariana, que reflectem olhares europeus.

 

Libelo contra o colonialismo, “Les statues meurent aussi” apresenta-nos esculturas e outros artefactos africanos “mortos”, porquanto desvirtuados do seu sentido primeiro quando resgatados pelos impérios europeus. É-nos contada uma história, que ainda não tinha passado à História, sobre a ignorância propositada dos colonos perante a cultura dos colonizados, a dessacralização de objectos destes, transformados em mercadoria e expostos como curiosidades. E é em museus etnográficos da Europa, quais cemitérios para estas peças insólitas e enigmáticas, que esta arte é filmada. A par da ancestralidade da estatuária, imagens de arquivo evidenciam outras formas da mesma subjugação no século XX.

Isto num filme francês saído em 1953, um ano antes da Guerra da Argélia, numa altura em que a França mantinha-se firme enquanto potência colonial.

Foi proibido após estreia e proibido ficou durante 11 anos, sem qualquer explicação pelas razões da sua censura, que facilmente adivinhamos.

 

É uma singularidade portuguesa o filme com mais cortes impostos por censura. Chama-se “Catembe”. Tinha originalmente a metragem de cerca de 80 minutos, e foi mutilado em 103 cortes, um recorde do Guinness.

Tentativa de retrato do quotidiano de Lourenço Marques (actual Maputo), o filme sobrevivente que apresentamos é uma remontagem de Faria de Almeida sem o material que não passou no crivo da censura. Ainda teve uma exibição privada em 1965 no cinema Império, mas acabou proibido pelas autoridades do Estado Novo, que não apreciaram uma visão antípoda das actualidades propagandísticas sobre Moçambique e restantes colónias. O autor filmara a sua cidade natal sem ocultar anseios da comunidade branca (“Falta de liberdade sentimos sobretudo no aspecto social”, diz uma rapariga), a pobreza dos negros (da qual poucas imagens sobraram), a convivência com as estrangeiras (as “bifas”) ou a mistura racial nos bares da cosmopolita Rua Araújo. “Cenas da mais baixa miséria moral e material”, como referido numa apreciação do Ministério do Interior, que ajudavam a revelar uma cidade colonial desconhecida da maioria dos portugueses da Metrópole, bem representados nos comentários, captados em modo “vérité” na Baixa lisboeta, sobre uma Lourenço Marques no meio do mato, selva de bichos de várias qualidades.

Exibimos, com a gentil autorização do realizador, uma cópia digital sofrível de “Catembe”. A única cópia restaurada do filme é em fita de 35 mm, pertencente ao ANIM.

Após os créditos finais serão visionados alguns cortes que escaparam à destruição levada a cabo pela Agência Geral do Ultramar.

 

A “General Idi Amin Dada”, patente e nome do conhecido ditador ugandês, juntou-lhe Barbet Schroeder “a Self-Portrait” no título de um documentário memorável. Auto-retrato porque Idi Amin, como próprio dos ditadores, para além de actor assumiu-se encenador do triste mas risível teatro que passou pela objectiva de Néstor Almendros, mestre da luz em cinema aqui nas funções de “cameraman”.

Décadas depois de Riefenstahl em “O Triunfo da Vontade”, o acontecimento também se fez para a câmara. À frente e atrás da mesma com devidas diferenças de estilo. Décadas antes de Ujica em “Autobiografia de Nicolae Ceausescu”, já se desvendava no espectador consciente um olhar seguramente contrário aos intuitos do actor-ditador perante imagens que o mesmo “co-produziu”.

O filme provoca-nos riso amiúde. A própria figura de Amin diverte-nos. Porém, mais do que um político delirante, ridículo e palavroso (como certos exemplos contemporâneos), estamos perante um assassino implacável. Estima-se que foi responsável por cerca de 300.000 mortes de civis.

Questiona Schroeder: não será o ditador africano, por consequência de um século de colonialismo, um reflexo em parte da imagem formada de nós mesmos? Nós, europeus.

Amin não gostou da versão internacional do filme (houve outra versão só para o Uganda). Após a recusa do realizador em cortar certas passagens, fez reféns quase 200 cidadãos franceses, acabando Schroeder por ceder. O “director’s cut” foi assim proibido até à queda de Idi Amin Dada em 1979.

 

Dia 13, 21:30

LET THERE BE LIGHT (1946, 58 min.), de John Huston

NOW! (1965, 5 min.), de Santiago Álvarez

LE 17e PARALLÈLE: LA GUERRE DU PEUPLE (1968, 1h53), de Joris Ivens

 

Três filmes ligados a conflitos que afectaram a sociedade norte-americana no século passado. A Segunda Grande Guerra, a luta pelos direitos civis da comunidade negra e o Vietname.

 

“Let There Be Light” foi encomendado e depois banido pelo governo dos EUA até 1980. Acendeu-se a luz do título bíblico, depois apagada perante o incómodo estatal provocado por imagens impactantes e demasiado humanas de militares norte-americanos, retornados da Segunda Guerra Mundial, sofrendo de stresse pós-traumático. Uma luz que incendiava o mito do soldado heróico americano, que era fundamental preservar para as autoridades do país no pós-guerra.

Inovadoramente, o filme recorreu a entrevistas que não foram redigidas e foi rodado sem argumento fechado, como anos mais tarde será praticado em exemplos de “cinéma vérité”. Porém, ao contrário do que é típico nesses filmes, no documentário de John Huston a câmara não anda ao ombro, ignorando-se novos hábitos da cobertura da guerra, e é utilizada em campos contracampos à maneira de Hollywood. De onde vêm outros traços estilísticos do filme como movimentos com “dolly” e iluminação artística.

Além de novidades formais enquanto documentário, “Let There Be Light” também anuncia o futuro por seguir um grupo de soldados traumatizados que junta homens de raça branca e negra de um exército ainda marcado pela segregação racial, cuja supressão apenas ocorrerá em 1948 e que tem aqui um visível prenúncio.

A rodagem do filme resultou ainda numa experiência comportamental com uma constatação médica assaz interessante. Verificou-se um estímulo provocado pela câmara de filmar nos soldados, uma vez que aqueles que foram filmados tiveram uma recuperação mais célere que os colegas. Naquele que é um exemplo positivo do chamado efeito Hawthorne, que acontece, numa definição simplificada, quando alguém tem uma alteração no seu comportamento por saber que está a ser observado.

 

Com a censura nos Estados Unidos garantida por servir-se da canção de protesto “Now”, interpretada pela militante Lena Horn e banida das frequências hertzianas daquele país, o pequeno filme homónimo do cubano Santiago Álvarez reflecte os conflitos raciais na terra do tio Sam como um proto-videoclipe, aglutinando dinâmica e inovadoramente múltiplas imagens de arquivo fílmico e fotográfico.

 

O “holandês voador” Joris Ivens viu diversos dos seus documentários serem proibidos por razões políticas em vários pontos do planeta. “Le 17e parallèle”, produzido durante a Guerra do Vietname com apoio do poder norte-vietnamita, não foi excepção, apesar do filme à época ter tido exibições no lado de cá da Cortina de Ferro (não foi, como expectável, o caso de Portugal), algumas envolvendo ameaças e sabotagens, como aconteceu no mesmo ano de 1968 com outro documentário fundamental sobre o conflito na Indochina, “In the Year of the Pig”, de Emile de Antonio.

O 17.º paralelo do título refere-se à linha que as potências internacionais utilizaram para separar Norte e Sul do Vietname.

Em colaboração com a sua companheira Marceline Loridan, Ivens, na altura já com 69 anos mas com a inquietude de “globe-trotter” de sempre e a atitude política permanecente de usar a câmara como arma, homenageia a resistência dos camponeses da aldeia norte-vietnamita Vinh Linh, localizada próxima do paralelo, aos massivos bombardeamentos dos Estados Unidos.

Este é assim um ponto de vista de uma guerra do lado inverso ao que estamos habituados.

 

Dia 20, 21:30

TITICUT FOLLIES (1967, 1h24), de Frederick Wiseman

WARRENDALE (1967, 1h40), de Allan King

 

Dois documentários controversos do mesmo ano. Dois exemplos maiores da ética observacional do Direct Cinema. Dois olhares sobre instituições psiquiátricas muito diferentes.

 

“Titicut Follies” é o primeiro filme da galeria de retratos de organismos institucionais de que se faz quase integralmente a longa e preciosa filmografia de Wiseman. Aqui a sua câmara à mão capta a realidade do Bridgewater State Hospital em 1966. Mais do que um hospital, uma prisão supostamente para criminosos com problemas mentais e não para pessoas como o jovem Vladimir, que observamos argumentando lucidamente sobre o absurdo do seu encarceramento em Bridgewater. Ainda que ninguém certamente mereça, por mais criminoso e louco, estar preso naquele lugar. Já que de crime e loucura deveria ser acusada a própria instituição.

Ao vermos neste presídio hospitalar o clima de humilhação, os maus tratos, a irracionalidade e sadismo de quem manda, a nudez imposta a prisioneiros nas celas é impossível não pensar em Auschwitz. Ou para espectadores pós-Abu Ghraib nesse outro local sinistro da maldade humana situado em solo iraquiano e também graficamente exposto.

Montadas paralelamente cenas de um espectáculo de talentos com reclusos e funcionários – que subliminarmente parece veículo para fantasias de “showman” de um certo guarda –, dão um carácter ainda mais alucinante ao filme, que não deixa de ser ele próprio um “freak show” (intitulado com o mesmo nome do “show” de talentos).

Em 1968 “Titicut Follies” foi acusado em tribunal de ser uma violação da privacidade e dignidade dos reclusos, acabando por tornar-se no primeiro filme a ser banido nos EUA por questões fora dos âmbitos da obscenidade e segurança nacional (o segundo filme foi “Superstar”, de Todd Haynes, outro filme proibido mítico, que ainda hoje não pode ser exibido).

Só em 1991 foi autorizada a sua circulação, 23 anos depois.

 

“Warrendale” apresenta de forma ímpar uma abordagem de ajuda e acompanhamento a menores de idade com problemas emocionais, que espelha novos métodos terapêuticos praticados nos anos 1960, inspirados pelas reflexões de Michel Foucault, entre outros, sobre a condição do paciente mental ou emocionalmente perturbado e o controlo social ao qual estava exposto.

Warrendale era o nome de um centro de acolhimento localizado nos subúrbios de Toronto, e um laboratório para o seu fundador John Brown, que pôs em prática um princípio de liberdade pessoal para todos os que eram ali tratados, bem como inovadoras e pouco ortodoxas práticas (dizia que assim eram porque todas as outras haviam falhado) como a técnica experimental “holding”, bloqueio corporal aplicado pelos assistentes de Brown em momentos de descontrolo das crianças e adolescentes, acompanhado de diálogo sobre o problema.

O envolvimento emocional e físico dos assistentes com os mais novos é a espaços comovente pelo investimento humano exigido aos primeiros, o sofrimento que vem dos segundos e a evidência da dificuldade em lidar-se com emoções exuberantemente manifestadas até ao extremo do insulto e da violência.

“Warrendale” ficou marcado pelo choque que o falecimento da cozinheira do centro provocou. Apesar de ter ocorrido no início das filmagens, King sabiamente colocou-o no último terço do filme como seu clímax, acontecendo assim para os nossos olhos já depois de conhecermos os protagonistas.

Originalmente produzido para passar na CBC, a estação de televisão pública do Canadá, viu a sua exibição proibida pela direcção da mesma perante a recusa do realizador em aceitar a censura dos palavrões que se ouvem no filme. Algo que curiosamente abriu a circulação internacional do mesmo em salas de cinema, onde teve bastante sucesso.

Quanto à instituição Warrendale, foi encerrada pouco depois da rodagem do filme.

 

Dia 27, 21:30

LOS ANGELES PLAYS ITSELF (2003, 2h49), de Thom Andersen

Ensaio videográfico sobre Los Angeles a partir de filmes ali rodados ao longo dos tempos, “Los Angeles Plays Itself” explora exemplarmente o valor documental do cinema de ficção, deslocando a cidade, do contexto, à condição de personagem principal. Desenrola-se a partir daí numa visão muito própria a história física e moral da cidade dos anjos. Com foco na sua relação com a indústria cinematográfica de Hollywood, e na forma como por esta foi apropriada e estereotipada.

Como “Cocksuker Blues”, de Robert Frank, outro documentário proibido que fez parte de um anterior programa KINO-DOC, durante anos o filme circulou clandestinamente em VHS, DVD-R e ficheiros de partilha ilegal, sendo apenas projectado em raras sessões organizadas com o autor.

Só em 2014 foi lançado comercialmente, devido aos receios de Thom Andersen de repercussões legais por ter utilizado sem autorização planos de mais de 200 filmes. Como tem acontecido nos Estados Unidos, nomeadamente nos últimos anos, com outros documentários de “found footage” em situações idênticas, as questões de direitos de imagem foram ultrapassadas ao abrigo do conceito legal “fair use”.

O filme convoca duas películas, “Killer of Sheep”, de Charles Burnett, e “The Exiles”, de Kent MacKenzie, que farão parte do cartaz do próximo programa KINO-DOC na Casa Comum. Chamar-se-á “Rua Americana” e ocorrerá em Abril e Maio próximos.

 

Programação e texto: Jorge de Carvalho, KINO-DOC

 

As sessões ocorrem na Casa Comum
da Reitoria da Universidade do Porto
Praça Gomes Teixeira, Porto
Entrada livre