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CORPO TRANSFORMADO: PROGRAMA KINO-DOC DE 40 FILMES NA UNIVERSIDADE DO PORTO

É uma maratona. 5 sessões de 40 filmes em 3 dias. Chama-se CORPO TRANSFORMADO e é mais um programa de cinema na Universidade do Porto com curadoria do KINO-DOC. É constituído por filmes, na sua maioria exploratórios e de cariz documental, que dão a ver transformações do próprio corpo – humano ou de outros animais – e corpos transformados pelo cinema, vídeo e por imagens científicas utilizadas no domínio artístico.

De sexta a domingo, dias 8, 9 e 10 de Abril. CORPO TRANSFORMADO é parte integrante do Casa Comum Fest, festival cultural na Universidade do Porto, a ocorrer durante todo o mês de Abril. Entrada livre.

 

CASA COMUM, Reitoria da Universidade do Porto
Praça Gomes Teixeira, Porto

 

Pela brutalidade gráfica que contêm, os filmes sinalizados com “*” são para maiores de 18 anos, e também devem ser evitados por espectadores mais sensíveis.

As sessões têm legendas em português.

 

Dia 8 de Abril, sexta-feira, 21h30

POWERS OF TEN (1977, 9 min.), de Charles Eames, Ray Eames

ORGANISM (1975, 19 min.), de Hilary Harris

GUT (2017, 2 min.), de Maria Bartilotti Matos

THE GEOGRAPHY OF THE BODY (1943, 7 min.), de Willard Maas

LES AMOURS DE LA PIEUVRE (1967, 14 min.), de Jean Painlevé, Geneviève Hamon

MINUTE BODIES, THE INTIMATE WORLD OF F. PERCY SMITH (2016, 53 min.), de Stuart A. Staples

LE SANG DES BÊTES* (1949, 22 min.), de Georges Franju

DEATH MILLS* (1945, 22 min.), de Billy Wilder, Hans Burger

 

Dia 9 de Abril, sábado, 17h

RITUAL IN TRANSFIGURED TIME (1946, 14 min.), de Maya Deren

LES TAMBOURS D’AVANT (TOUROU ET BITTI) (1971, 9 min.), de Jean Rouch

EVASI (1964, 12 min.), de Franco Piavoli

RAJNEESH MOVEMENT, OREGON, USA (circa 1982, 2 min.), de autor anónimo

THE TROGGS, PALAIS DES SPORTS DE PARIS (1967, 6 min.), de autor anónimo

BREAKAWAY (1966, 5 min.), de Bruce Conner

PARA O OLHO DIREITO MAGOADO (1968, 12 min.), de Toshio Matsumoto

QUEENS AT HEART (circa 1967, 22 min.), de autor anónimo

THE QUEEN (1968, 1h06), de Frank Simon

LIVING INSIDE (1989, 5 min.), de Sadie Benning

IN MY LANGUAGE (2007, 8 min.), de Amanda Baggs

 

Dia 9 de Abril, sábado, 21h30

LIVING IN A REVERSED WORLD (1958, 10 min.), de Theodor Wrismann, Ivo Kohler

CRIANÇA CEGA (1964, 25 min.), de Johan van der Keuken

A CASA É ESCURA* (1963, 21 min.), de Forough Farrokhzad

RE: AWAKENINGS (2013, 18 min.), de Bill Morrison

OH! UOMO* (2004, 1h08), de Yervant Gianikian, Angela Ricci Lucchi

 

Dia 10 de Abril, domingo, 17h

FUEGO EN CASTILLA (1960, 17 min.), de José Val del Omar

HORIZONTES COMIDOS (1950, 3 min.), de Wilhelm Freddie, Jørgen Roos

ELEPHANT (1988, 37 min.), de Alan Clarke

2 INTO 1 (1997, 4 min.), de Gillian Wearing

IDENTIFICATIONS: KEITH SONNIER (1970, 2 min.), de Keith Sonnier, Gerry Schum

TAKE OFF (1972, 8 min.), de Gunvor Nelson

OLYMPIAD (1971, 2 min.), de Lillian Schwartz, Ken Knowlton

DREAM WORK (2001, 10 min.), de Peter Tscherkassky

CUADECUC VAMPIR (1971, 1h09), de Pere Portabella

 

Dia 10 de Abril, domingo, 21h30

VIDA (1993, 13 min.), de Artavazd Pelechian

DANIELLE (2013, 4 min.), de Anthony Cerniello

THANATOPSIS (1963, 5 min.), de Ed Emshwiller

THE ACT OF SEEING WITH ONE’S OWN EYES* (1971, 31 min.), de Stan Brakhage

FUNERAL OF DYLAN THOMAS (1953, 1 min.), da British Pathé

PASQUA IN SICILIA (1955, 7 min.), de Vittorio De Seta

FOREST OF BLISS (1985, 1h29), de Robert Gardner

 

 

A 1.ª SESSÃO do programa inicia-se com três filmes que recorrem à imagem científica, que transforma o corpo que vemos pelos nossos olhos, sem tecnologia, num outro corpo. Um corpo imagético, apenas visível tecnologicamente. Segue-se a geografia do corpo ilustrada num antigo filme em sucessivos planos de pormenor, e outros três documentários com corpos transformados de animais. Finalizando a sessão fazemos “raccord” entre filmes, passando de matadouros a campos de extermínio do Holocausto.

 

POWERS OF TEN, dos designers pioneiros Charles e Ray Eames, é um documentário didáctico feito para a IBM, que dá conta do tamanho relativo das coisas no universo. É também uma viagem em dois sentidos. Primeiro o sentido é macrocósmico. Vai de um casal num piquenique em Chicago a distantes corpos celestes, num impossível “zoom out” que passa a “zoom in”, regressando ao casal do piquenique. Entra-se a partir daí no segundo sentido da viagem, que é microcósmico. Uma imersão no interior do corpo humano. Um corpo transformado pela imagem, não alcançável pela percepção humana, que traduz o conhecimento científico de estruturas ínfimas. Revelando-se este corpo imagético tão secreto e distante como a arquitectura do universo.

Dizia o casal Eames a propósito do filme que “Nos últimos 50 anos, o mundo gradualmente tem descoberto algo que os arquitectos sempre souberam, isto é, tudo é arquitectura.”

 

ORGANISM coloca o interior do corpo humano e seus micro-organismos, captados em imagens médicas, num dueto com o macro-organismo de uma grande cidade. Outra forma de abordar a analogia microcosmo-macrocosmo, em consonância com antigos filósofos que postulavam uma semelhança estrutural entre ser humano e cosmos. O humano, e o seu corpo, como reflexo do universo e vice-versa.

Aqui o universo não é o da natureza e dos astros, mas a arquitectura e a “vida” da própria criação humana macrocósmica, a metrópole moderna. O corpo reflecte o universo; o universo, o corpo. O corpo reflecte a cidade; a cidade, o corpo. Uma dialética bem presente na montagem eisensteiniana de “Organism”, como que procurando no paralelo musical corpo-cidade uma proporção áurea, essa mística metafísica das formas que também encantava o mestre soviético.

Como a curta-metragem dos Eames, este filme de Hilary Harris foi visualmente inovador e teve um forte impacto à época, em grande medida pela utilização original do “time-lapse”, tão replicado no mais famoso “Koyaanisqatsi” e seus avatares.

 

GUT é uma produção do KINO-DOC e o resultado dos estudos que juntam dança, medicina e cinema de Maria Bartilotti Matos. Um tríptico videográfico que relaciona imagens e sons de um corpo intestino com uma dança aquática. Dois mundos líquidos que se contrastam e assemelham. Dois registos da anatomia humana: o corpo em movimento, como é apreendido directamente pela visão humana, e os movimentos do interior do corpo captados por ultrassons. Um corpo concreto e, o outro, um corpo transformado pela tecnologia médica da imagiologia.

 

THE GEOGRAPHY OF THE BODY tem por epígrafe uma frase em grego de Aristófanes, retirada d’“O Banquete” de Platão: “Ao desejo e à procura do todo dá-se o nome de amor”. A mesma é repetida no final do filme por George Barker, poeta de voz fleumática que escutamos em “off”, de fio a pavio, dizendo um texto surrealista escrito pelo próprio. Acompanhando a literatura sucedem-se imagens de corpos de um homem e de uma mulher filmados em planos de pormenor, alguns bastante fechados (em olhos, orelha, umbigo, língua, seios…), que transformam o corpo num lugar vasto e rico em muitas paisagens diferentes. Toda uma geografia do corpo (expressão hoje tão batida).

A citação de Aristófanes é actuante. Parece fazer ecoar, nas palavras oraculares de Barker, a fina ironia do comediógrafo grego. Por outro lado, invoca a sua concepção do amor, exposta n’”O Banquete”, como uma busca por uma unidade primitiva no outro, que aqui faz rima perfeita com as mãos dadas dos amantes, que vemos perto do fim deste filme de Willard Maas.

 

LES AMOURS DE LA PIEUVRE é um exemplo do surrealismo zoológico da obra de Jean Painlevé, co-realizado por Geneviève Hamon, sua companheira. No extenso bestiário da filmografia painleviana, o polvo tem um lugar especial. Foi, aliás, o fascínio por este cefalópode que levou o autor a estudar a vida animal.

O filme apresenta-nos a “vida amorosa” dos polvos. Regista os seus movimentos lúbricos, as metamorfoses corporais do acto sexual e da gestação na perspectiva do cinema mágico de Painlevé, que fazia a apologia da “superioridade da realidade” e tinha por pilares a ciência, a gravação da “extraordinária inventividade da Natureza” (palavras suas) e a procura de uma plasticidade forte.

As filmagens dos polvos românticos desta curta documental são acompanhadas por um comentário pedagógico e pela música alienígena de Pierre Henry, vanguardista da “musique concrète”, que incluiu a sonoridade dos movimentos aquáticos destes animais tentaculares no processo de composição da banda sonora.

 

MINUTE BODIES, THE INTIMATE WORLD OF F. PERCY SMITH, de Stuart A. Staples, é uma obra de “found footage” a partir dos filmes científicos de F. Percy Smith (1880-1945), um cineasta visionário autodidacta, precursor do micro-cinema, cujo trabalho se iniciou ainda na primeira década do século XX. Os “minute bodies”, que compõem o maravilhoso “mundo íntimo” de Smith, são pequenos animais, plantas, células e microrganismos.

A notável dimensão estética do microcosmo que nos é revelado, tantas vezes no limite da abstracção, tem a sua riqueza poética valorizada pela envolvente música contemplativa e hipnótica dos Tindersticks, banda de Staples, mais habituada ao cinema de Claire Denis, que se escuta ao longo de toda a película.

 

LE SANG DES BÊTES foi a arrojada primeira obra cinematográfica de Georges Franju. Filmada no pós-2.ª Guerra Mundial, é um retrato documental cru dos matadouros da época, cuja brutalidade abala cabeças e estômagos de espectadores, que nunca esquecerão o que aqui vêem.

A narração que se escuta, escrita pelo animalista Jean Painlevé, tem duas vozes opostas. Uma feminina, doce e delicada que contribui para o tom de normalidade do início do filme (a música, as paisagens, crianças brincando, namorados beijando-se…), comentando os subúrbios parisienses, e que fica à porta dos matadouros até perto do final. E uma outra, uma voz-off masculina, que habita nos açougues, despida de sentimento (“sem raiva e sem ódio”, como no poema de Baudelaire dito no filme), que apresenta as ferramentas da matança, nomeia os carniceiros, filmados como pessoas que executam o seu trabalho como outro qualquer, e descreve minuciosamente os procedimentos da carnificina, enquanto se desmantelam carcaças e o sangue jorra.

“Le sang des bêtes” mantém intacta a sua força visceral. Os igualmente históricos documentários posteriores “Le cochon” (1970), de Jean Eustache e Jean-Michel Barjol, sobre a matança artesanal do porco, e “Meat” (1976), de Frederick Wiseman, que cobre todo o processo industrial da carne animal, apesar da crueza do seu realismo não nos afectam da mesma maneira.

Quando estreou em 1949 foram copiosas as comparações com os campos de extermínio nazis, tão na boca do mundo por esses tempos em que as evidências da maldade e do aniquilamento em massa de seres humanos diziam que as bestas somos nós. E é com um duro documentário sobre esse outro tema, que finalizamos esta sessão.

 

DEATH MILLS é uma obra muito pouco conhecida de Billy Wilder, e singularíssima no conjunto da sua obra. Foi o seu único filme documental e uma produção do Departamento de Guerra dos EUA, co-realizada com Hans Burger. “Die Todesmühlen”, seu título original em alemão, dá conta da dimensão monstruosa da indústria de extermínio nazi, incluindo a sua vertente economicista.

Foi o primeiro documentário sobre o Holocausto, exibido logo no fim da guerra pelos Aliados, num esforço de consciencialização e doutrinação, às populações alemãs e austríacas – um reflexo ampliado da passagem do filme que mostra habitantes de Weimar a observarem os corpos transformados das vítimas das “fábricas da morte” que lhes eram vizinhas.

Para Billy Wilder trabalhar no projecto, olhando de frente o horror de toda esta monstruosidade, foi também uma questão muito pessoal. Como os órfãos de Auschwitz que se vêem em “Death Mills”, também ele era judeu e perdera a família nesse mesmo campo.

Ao contrário da maioria dos documentários produzidos pelo governo dos EUA no pós-guerra, o tom da narração é acusatório. “Nenhum pesadelo jamais assombrou aqueles que viviam perto dos campos de concentração. Os gritos e lamentos dos torturados certamente eram considerados ruído do vento.”, diz-se com o tão característico cinismo do autor de “Sunset Boulevard”. Ainda assim a anos-luz em matérias de cinismo da infame “arbeit macht frei” (“o trabalho liberta”), expressão inscrita na entrada de vários campos, também vislumbrada no filme.

 

 

A 2.ª SESSÃO junta diferentes filmes que registam a liberdade corporal em mulheres e homens, tantas vezes com uma câmara também livre. Depois do “olho direito magoado” de Matsumoto, essa liberdade chega ao universo “queer”, tão dado a transformações do corpo. Nos dois derradeiros filmes da sessão, a liberdade já é a dos corpos não-binários de Sadie Benning e Amanda Baggs.

 

RITUAL IN TRANSFIGURED TIME é uma obra onírica e secreta, em que o tempo é transfigurado, como em muitas películas de Maya Deren, pela montagem e pelo ilusionismo dos efeitos da pós-produção. Mas aqui há corpos que também se transfiguram.

Uma mulher (Rita Christiani, bailarina originária de Trinidade e Tobago) encontra-se com outra mulher (Maya Deren). A primeira enrola o fio da segunda. Será um fio de Ariadne? Sempre sob o olhar sibilino de uma terceira mulher (a lendária Anaïs Nin), Maya desaparece magicamente e Rita entra num labirinto sem retorno. Numa festa, em que se dança, encontra um homem e com ele é transportada para o que pode ser um templo greco-romano. O homem, sempre dançando, transforma-se numa escultura, que nos lembra a estatuária clássica. E Rita transforma-se em Maya num revelador “match cut”. As duas são a mesma mulher. E essa mulher foge do homem. Por fim, o seu rosto é o de Rita, desvelado num plano a negativo.

A versão que exibimos contraria a vontade da realizadora do filme ser mudo. Foi sonorizada com a música que Nikos Kokolakis escreveu este século para a obra, que, acreditamos, amplia magnificamente a sua profundidade.

 

LES TAMBOURS D’AVANT (TOUROU ET BITTI), de Jean Rouch, é o produto experienciado de um ritual de possessão filmado em plano-sequência. A partir dele Rouch definiu o que chamou Ciné-Transe. Antes dele já Maya Deren o havia vivido e filmado. Continuemos com ela.

Após “Ritual in Transfigured Time”, Deren embarcou para o Haiti na demanda de novas emoções e de um cinema documental de base etnográfica que captasse os rituais vudu e suas danças. Cerimónias em que possessos, sem consciência, movimentam-se em potência. Como “corpos sem órgãos”, expressão de Antonin Artaud, conceptualizada mais tarde por Deleuze.

Deren defendia o cinema amador, que se opunha a Hollywood. Um cinema livre que não almeja a bilheteira, cuja câmara não se fixa no tripé e se converte, ao ombro do cineasta, numa extensão do seu corpo. Torna-se o próprio corpo o equipamento para lá da câmara.

Esta aventura haitiana seguiu esse desígnio, como outros filmes desta sessão. Mas nela juntou-se um elemento novo ao equipamento, que anunciava o futuro do documentário. Em 1947, ano do início da rodagem, para além de filmar à mão com a sua Bolex, a autora captou som de campo com um gravador de fio, alimentado engenhosamente pela bateria de um automóvel.

A rodagem durou até 1954, e Deren viveu a filmagem no seu corpo. Dançou com possessos, e da etnografia do transe do vudu passou à experiência do próprio transe. Infelizmente os brutos deste projecto só foram montados depois da sua morte por Teiji Ito e Cherel Winett Ito, o viúvo de Deren e a mulher deste. O resultado, “Divine Horsemen: the Living Gods of Haiti” (1977), ficou muito aquém da noção de verticalidade poética da autora (tão rica nas suas obras), para quem o desenvolvimento de um filme faz-se narrativamente na horizontal e poeticamente na vertical.

1947 foi também um ano iniciático para Jean Rouch. É nesse ano que é lançado “Au pays des mages noirs”, seu primeiro filme, filmado no Niger com a sua Bell & Howell ao ombro, visto ter perdido o tripé. Até “Les tambours d’avant”, rodou as suas memoráveis etnoficções africanas e o marcante “Chronique d’un été”, através do qual, com Edgar Morin, estabeleceu aquilo que se veio a chamar “cinéma vérité”.

O Ciné-Transe, que o filme que exibimos de Rouch convoca, sempre foi referido por este de forma vaga. No entanto, é inteligível que a sua proposta essencial é a de um cinema que registe o acontecimento com a participação do próprio cineasta, como um iniciado num ritual, mas sem interferir no mesmo (estando “presente e invisível”, como se diz no filme). Aquele que filma transforma-se num “olho e ouvido mecânicos”, escreveu vertovianamente mais tarde Rouch, dançando com a câmara enquanto segue de perto, e não “zoomando”, o movimento das pessoas.

 

EVASI é também exemplo de um cinema livre, com câmara à mão, que filma em 8 mm outros corpos transformados. Franco Piavoli regista à sua volta, quase sempre frontalmente e muitas vezes em grande plano o público de um jogo de futebol, conquanto nunca se perceba directamente pelas imagens qual é a modalidade.

O olhar sobre este universo habitualmente oculto, num esquecido contracampo, é de uma curiosidade antropológica e revela uma multidão de homens, numa altura em que as mulheres não “iam à bola”. A testosterona dos “tifosi” fervilha nas reacções ao desafio e explode não com um qualquer orgásmico golo, mas na violência gratuita do fanatismo, tão frequente em estádios de futebol ontem e hoje.

Não será despiciendo o plano de uma fábrica, numa altura em que a partida já acabara, ficando as bancadas descobertas da moldura humana mas cobertas de lixo. Seriam operários muitos daqueles “evadidos” (como se enuncia no título da obra). Já os planos da lua fazem pensar em Tobe Hooper, que dizia que filmava a lua por esta ser um símbolo ancestral da loucura.

 

RAJNEESH MOVEMENT, OREGON, USA mostra filmagens de autor desconhecido, incluídas no documentário cristão norte-americano anti-Nova Era “Gods of the New Age” (1984), remontado no KINO-DOC, à luz do conceito jurídico americano “fair use”, de forma a eliminar a narração e aproximar as imagens de uma sensação de som directo.

O movimento Rajneesh estabeleceu uma enorme e poderosa comunidade New Age num rancho no Oregon, em princípios dos anos 1980. As imagens que aqui vemos são reveladoras do “processo de libertação” de Rajneesh, que atraiu muito boa gente (Terence Stamp, Peter Sloterdijk, entre outras luminárias). A maior parte deles filhos da contra-cultura dos 60s, para os quais a liberdade do corpo era um primado.

Após uma sequência de crimes graves imputados a líderes do movimento, a sua extravagante cidadela nos Estados Unidos (chegou a ter um aeroporto) acabou por ser desmantelada, ainda durante a década de 80.

 

THE TROGGS, PALAIS DES SPORTS DE PARIS, que aqui apresentamos, é um excerto do registo do concerto da banda de “Wild Thing” no Palácio dos Desportos parisiense em 1967. Foi televisionado no magazine musical do canal ORTF, “Bouton rouge”, que durou pouco mais de um ano e no qual trabalhou Philippe Garrel.

Pouco mais se sabe destas imagens não-creditadas, que captam como no palco e na plateia a música transforma os corpos. A operação de câmara é errática mas inventiva nas panorâmicas dinâmicas que desenha e nas variações rápidas de zoom, tão bem registando a entrega dos Troggs ao “rock ´n´ roll” que produzem, persistentemente acompanhado pelos gritos extasiados da audiência.

 

BREAKAWAY é um proto-videoclipe de 1966, de Bruce Conner, autor dado a reinvenções musicais com “found footage”. Aqui o tema musical é acompanhado, não por arquivo, mas por uma sequência de planos filmados com Toni Basil montada num ritmo sincopado. Ela posa e dança sensualmente, despindo-se e vestindo-se para a câmara. A letra de “Breakaway”, que se escuta, cantada por Basil “elle-même”, dá um tom libertário a uma obra surgida em plena época de emancipação feminina.

É uma curta-metragem pioneira, presciente de uma linguagem visual que se tornará global com o surgimento da MTV, 15 anos mais tarde, e de uma desmontagem musical, que lembra “Tomorrow never Knows”, dos Beatles, do mesmo ano, mas também anuncia a manipulação DJ do futuro.

 

PARA O OLHO DIREITO MAGOADO é uma curta do grande artista visual que foi Toshio Matsumoto, autor de invulgares obras cinematográficas e de vídeo-arte. A torrente psicadélica de planos que aqui vemos, muitos deles de jovens dançando e de arquivo dos recorrentes tumultos da época; o “split screen”, originalmente conjugando três projecções; a música popular e outros sons manipulados traduzem muita da linguagem audiovisual do final dos anos 1960. Num evidente reflexo de experiências psicotrópicas que também transformavam corpos prenhes de libertação.

Entre imagens quotidianas, muitas delas bizarras, um homem japonês, como um actor de um Kabuki moderno, arranja-se como uma mulher (a subcultura travesti inspirará outra vez Matsumoto em “O Funeral das Rosas”, longa de 1969 que influenciará a estética da “Laranja Mecânica”, de Kubrick).

“Para o Olho Direito Magoado” termina ouvindo-se “Respect”, de Aretha Franklin, que pode ser percebido como um clamor que reclama respeito por muito daquilo que se observa no filme.

 

QUEENS AT HEART é referido numa introdução pelo seu apresentador como o resultado de um projecto psicológico. Depois vemos quatro participantes de um baile “queer”, juntas num curto sofá, como se estivessem numa consulta conjunta. O que a partir daí se segue é uma preciosa descrição da vivência da transgeneridade e transexualidade nos EUA, pouco antes da Revolta de Stonewall de 1969.

O que mais impressiona nesta pérola de realizador anónimo, e bastante audaz para a época, é a feição aberta, digna e despudorada como se fala na 1.ª pessoa sobre as experiências sexuais, a vida dúplice, o tratamento hormonal, o sonho da mudança de sexo ou a hipótese do suicídio. Em paralelo escutamos um apresentador com um discurso que evidencia o quadro mental da época, como quando define homossexualidade como uma “aberração psicológica”, mas que não deixa de confrontar a audiência perante o típico moralismo condenatório que incidia sobre estas “rainhas de coração”.

 

THE QUEEN centra-se naquele que era, para além dos bailes organizados pela comunidade “gay”, o lugar por excelência da manifestação pública “queer” de outros tempos – o concurso de beleza de “drag queens” (sendo que “queen” verdadeiramente só seria uma, a eleita, “a rainha” do título). Como o filme prova, esse tipo de espectáculo em Nova Iorque possuía a aura de “showbiz” da Broadway, e envolvia muito investimento humano para além dos concorrentes. Todo o processo de organização era complexo e exigente.

E é no palco de um auditório cheio de gente que são louvadas neste concurso as “drag queens”, pessoas do sexo masculino travestidas, “pessoas da noite”, como por aqui se diz, que “querem amor”. Que estão dentro de uma “bolha de fantasia”. “Mas quem é que não está numa bolha de fantasia?”, alguém pergunta.

E é com a melancolia de uma bolha de fantasia desfeita que acontece o plano final deste documentário único, com a rainha vencedora do concurso, outra vez de calças, girando o seu troféu nas mãos. Já longe das luzes de um palco, diante do qual uma plateia a aplaudia…

 

LIVING INSIDE faz parte dos vídeos diarísticos curtos de Sadie Benning enquanto adolescente. Foi o seu pai, o célebre cineasta independente James Benning, que lhe ofereceu a câmara de brincar com a qual fez os ditos.

Este filme precoce é um bom exemplo da abordagem videográfica desses tempos da futura “riot grrrl”, da banda Le Tigre, e actualmente artista poliglota não-binária. Os planos são curtos, bem fechados no rosto, e ligados por transições distorcidas de vídeo analógico. A figuração do corpo de Sadie é assim fragmentada e semi-oculta. Adjectivos que também caracterizam o seu discurso confessional, que aqui, como noutros vídeos que filmou, dão conta da experiência traumática de uma jovem homossexual, fechada no seu quarto, perante uma sociedade que lhe era profundamente hostil.

 

IN MY LANGUAGE revela Amanda Baggs, reagindo fisicamente a tudo o que a rodeia, como a própria refere neste vídeo, que é um “statement” da sua linguagem própria. A linguagem de uma pessoa autista. O resultado audiovisual conseguido por esta bloguista e militante não-binária é impressionante.

Escusamo-nos de mais palavras sobre esta obra. As palavras da própria Baggs que nos chegam através de um dispositivo especial na segunda parte de “In My Language”, que se apresentam como uma tradução do que víramos antes, são a mais justa verbalização sobre este objecto singular.

A versão em língua portuguesa que exibimos foi extraída tal qual se encontra na Internet, o primeiro lugar deste vídeo.

 

 

A 3.ª SESSÃO arranca com um insólito documentário sobre a percepção humana, seguido de outras obras documentais luminosas com corpos transformados pela cegueira, lepra, encefalite letárgica e, finalizando, pela fome e mutilação trazidas pela guerra.

 

LIVING IN A REVERSED WORLD foi filmado no Instituto de Psicologia Experimental da universidade austríaca de Innsbruck no final dos anos 1950. Dá conta de estudos de percepção humana condicionada a nível da visão e da orientação física, que transformam corpos de cobaias em figuras descontroladas num mundo de pernas para o ar.

O tom deste documentário educacional invulgar é risível e surrealizante, e lembra-nos as relações complexas entre corpo e mente, entre sentir e ver, que prolongam a questão da “Ética” de Espinoza “O que pode o corpo para lá da mente?”. E que justificam, como aqui se afirma, que não é de todo evidente estarmos a ver a tela do filme como aparentemente nos parece.

 

CRIANÇA CEGA é um documentário de van der Keuken sobre crianças e adolescentes de um instituto holandês dedicado a invisuais. Cobre a sua vivência no instituto: as aprendizagens dedicadas ao tacto e à audição, os exercícios físicos (magníficos os planos em “ralenti” enquanto correm) e o lazer, que espelham um ambiente positivo, onde despontam sorrisos e gestos de companheirismo.

Antes, com a pontuação de telas negras entre imagens do quotidiano que sublinham o mundo sobremaneira visual em que vivemos, ouvimos o que pensam sobre a sua condição de cegos e sobre a sua relação com a sociedade, que criticam por os tratar com condescendência.

No final de “Criança Cega” vislumbramos os protagonistas, com os seus “sticks”, deslocando-se fora do instituto, nas ruas. O cineasta, possivelmente virando ostensivamente a câmara para os transeuntes, consegue recolher vários olhares dos mesmos para a objectiva, traduzindo o olhar dos que vêem sobre os que não vêem, e inventando um hábil contracampo ao rapaz cego, que vemos a caminhar até ser fixado num paralítico, que rememora o fim de “Les quatre cents coups”, de Truffaut, outro retrato da tenra idade.

 

A CASA É ESCURA é uma obra-mestra do documentário, realizada pela poetisa modernista iraniana Forough Farrokhzad, e seu único filme.

A sua poesia aqui materializou-se como objecto de cinema com esplendor. Está nas imagens da colónia de leprosos que filmou como nunca ninguém antes havia filmado o ser humano, gravando a luz em película que guarda para a posteridade os corpos marcados pela praga que assaltam os nossos olhos, e nos provocam esgares de perplexidade e comoção.

E está nas palavras em persa que se escutam. Nas suaves vozes-off (há uma inusitada paz em todo o filme) que ora são palavras para um invisível Deus ancestral, em múltiplas citações do Corão e do Antigo Testamento; ora são dirigidas a nós que olhamos os rostos erodidos dos enfermos, muitos deles crianças, e ouvimos, lemos os apelos para acabar com aquela fealdade, erradicando uma doença tão antiga que já era bíblica. Acabar com o sofrimento das vítimas. O sofrimento humano de todas as lepras, de todos os tempos futuros daqueles que vêem esta obra e nunca a irão esquecer. Ficará connosco para sempre, com a sua universalidade e simbologia religiosas, como uma cicatriz na retina que nos alcança as emoções da compaixão.

Um monumento visual de Farrokhzad (paradoxalmente conhecida como iconoclasta), onde a fealdade tão imaculada e dignamente exposta em filme torna-se uma outra luz, de uma beleza gloriosa e verdadeira só possível no cinema documental.

 

RE: AWAKENINGS é uma obra da faceta mais documental de Bill Morrison, celebrado autor de filmes imersivos com arquivo, que frequentemente dispensam o verbo (aqui as palavras são escritas, como nos vetustos filmes mudos). E é outra obra deste programa com corpos patologicamente transformados.

Abordando o emblemático “case study” dos “despertares” de Oliver Sacks, que originou um “blockbuster” de Hollywood em 1990, Morrison desvenda, ao som de uma peça para saxofone de Philip Glass, imagens bastante antigas de doentes “congelados” pela misteriosa epidemia de encefalite letárgica, seguidas de imagens já do período do milagre clínico de Sacks, em que os pacientes, quais Lázaros, “ressuscitaram”. A mobilidade limitada que apresentam evoca os japoneses que sofriam de paralisia cerebral do documentário radical “Adeus, PC”, de Kazuo Hara, que também poderia fazer parte deste programa.

 

OH! UOMO, de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, é o terceiro de uma trilogia da dupla com base em arquivo de imagem em movimento da 1.ª Guerra Mundial. Neste título a arqueologia visual recriada pelas habituais trucagens dos autores (câmaras lentas, imagens em negativo, reenquadramentos, sobreposição de planos), e sonoramente dramatizada por peças de música erudita, incide sobre corpos violentados pelo belicismo. “Um catálogo anatómico da desconstrução e recomposição artificial do corpo humano” é assim apresentada a obra.

Após um prelúdio com “símbolos do totalitarismo”, como referido no próprio filme, a colagem de imagens brutais a que assistimos dá corpo a um díptico com crianças estupradas de várias formas pelo conflito armado e a “gueules cassées”, soldados mutilados, como aqueles que se viam medalhados no “Hôtel des Invalides” (impossível esquecer, nesse filme de Franju, o movimento de câmara do rosto desfigurado de um ex-soldado às medalhas que ostenta no peito). Mas nunca o cinema documental havia revelado tão frontalmente e sem pudor as marcas do horror marcial nos rostos, como que respondendo graficamente à pergunta de da Vinci inscrita na epígrafe “São estas coisas feitas por homens?”.

 

 

A 4.ª SESSÃO faz-se de filmes exploratórios em que os corpos são artificialmente metamorfoseados por efeitos visuais (tecnológicos e artesanais) ou pela interpretação dos actores, essa recorrente transformação do cinema.

 

FUEGO EN CASTILLA foi filmado no Colegio de San Gregorio, um importante museu de escultura sacra, e numa capela, ambos na província de Valladolid. Quem o filmou foi José Val del Omar, cineasta espanhol ímpar, pouco considerado no seu tempo, que sonhava com um cinema sensorial, que juntasse à experiência do espectador os domínios do paladar e do olfacto (os filmes com fragrâncias da fase inicial da obra de Gianikian e Ricci Lucchi são parte da concretização desse desejo). Na sua demanda por um cinema total, ao qual chamou “Picto-          Lumínica-Audio-Táctil”, Val del Omar desenvolveu ele próprio diferentes exemplos de tecnologia cinematográfica inovadora (como uma objectiva zoom “avant la lettre”).

Em “Fuego en Castilla” interessava-lhe alcançar o que chamou “visão táctil”. Para isso inventou uma técnica de iluminação pulsante em que a luz dá uma profundidade de um 3D primitivo. Uma luz vinda da morte primaveril que “levanta as cortinas”, como lemos nas palavras de García Lorca que aqui servem de epígrafe. Uma luz, como o fogo do título, que incendeia-nos os olhos com formas humanas escultóricas, corpos transformados de outra ordem, que ganham vida pela alquimia deste cinema.

Com tudo o resto de fascinante nesta obra, essa extravagante “TactilVisión”, amplificada pela música electro-acústica e diafonia sonora, que Val del Omar já havia explorado em “Aguaespejo granadino”, fizeram do filme um óvni do seu tempo e uma reconhecida obra-prima no seu futuro.

Só nos fica a faltar a projecção como experienciada em 1960, que ultrapassava os limites da tela, espalhando-se abstractamente pela sala de cinema. Esta forma precoce de cinema expandido, designada “desbordamiento apanorámico de la imagen”, é irrepetível uma vez que o seu dispositivo óptico perdeu-se.

 

HORIZONTES COMIDOS é o resultado da colaboração entre os dinamarqueses Jørgen Roos, que se notabilizou como documentarista, e o artista Wilhelm Freddie. O corpo de uma mulher é aberto por um homem (Freddie) e comido por outro (Roos). A mulher mantém-se viva. Vemos repetidamente um pão, finalmente recheado por aquilo que parece ser a mesma papa do interior do corpo da mulher.

“Horizontes Comidos” é apresentado no seu início como “um filme sobre o amor e a sua destruição em perfeita felicidade”, mas como obra genuinamente surrealista os seus signos são indecifráveis.

 

ELEPHANT é um filme televisivo de 1988, realizado por Alan Clarke, inspirado no conflito que se vivia à época na Irlanda do Norte, entre protestantes e católicos, conhecido por “The Troubles”. Foi, com o massacre de Columbine, a fonte principal para a longa-metragem de Gus Van Sant do mesmo nome, e filme canónico do cinema do século XXI. Van Sant, para além de roubar o título, inspirou-se nos prolongados planos de perseguição com Steadicam do “Elephant” original e na profunda frieza dramática deste.

No filme de Alan Clarke a transformação corporal a que assistimos é a da morte súbita por tiro à queima roupa, interpretada por actores. “Elephant” é uma ficção, contudo, sem história. Das suas personagens nada sabemos. São homens silenciosos, quase todos assassinos e assassinados, sem antes nem depois. Os homicídios, alguns recriados a partir de relatos policiais de crimes verídicos, vão desenrolando-se sucessiva e niilisticamente, traduzindo um realismo intrínseco aos planos longos, na linha do que dizia André Bazin na sua defesa da montagem interdita. Um realismo reforçado pelo grão da película de 16 mm.

Por toda a violência gráfica crua de contornos abstractos envolvida, sem qualquer leitura moral, o filme foi antípode do convencional produto da BBC, canal onde foi originalmente exibido.

 

2 INTO 1 é um projecto de vídeo-arte em que, por manipulação de pós-produção, as “talking heads” de uma mãe, por um lado, e de dois filhos gémeos, por outro, surgem com as vozes trocadas. Com movimentos labiais perfeitamente sincronizados com as palavras, observamos a mãe com a voz de cada um dos filhos, e os filhos com a voz da mãe. Numa estranha forma de possessão, fazendo uso das possibilidades mágicas do “medium” videográfico, eles falam sobre ela com o corpo dela, e ela sobre eles com os corpos deles. Trocando toda a ordem entre imagem e som que pré-assumimos. Cada plano é surpreendentemente ao mesmo tempo um “A- roll” (aquilo que se ouve) e um “B-roll” (aquilo que se vê).

Esta obra da artista visual inglesa Gillian Wearing é assim uma inventiva subversão do documentário com “cabeças falantes”, que transpõe de maneira desconcertante a tantas vezes difícil relação entre mães e filhos pré-adolescentes.

 

IDENTIFICATIONS: KEITH SONNIER é o contributo do artista norte-americano Keith Sonnier para o filme “Identifications”, de Gerry Schum, que convidara vinte artistas de várias nacionalidades a se expressarem através dos seus corpos. Transmitido originalmente na estação ARD para toda a República Federal da Alemanha em 1970, “Identifications” seguia-se à exibição histórica no pequeno ecrã de “Land Art”, do ano anterior, e dava continuidade ao intento de retirar a arte definitivamente do cavalete e das suas noções conservadoras, e desenvolver a própria criação artística na televisão em vez de esta simplesmente documentar aquela.

Sonnier aparece filmado num plano aproximado de peito, duplicado num “split screen” positivo à esquerda e negativo à direita, em perspectiva variável provocada por um movimento giratório do corpo. É um retrato que ilustra bem as desconstruções da representação corporal, que o vídeo nas mãos dos artistas da época ia produzindo.

 

TAKE OFF da artista sueca Gunvor Nelson é uma leitura irónica do fenómeno do “striptease” e da objectificação do corpo feminino a ele associada.

A mulher que vemos vai despindo-se ao som de uma banda sonora de ruídos sintéticos, que é o contrário de um acompanhamento musical erógeno. O seu corpo aparece replicado, como num jogo de espelhos, em azul e escarlate. As duas formas vão sobrepondo-se com um efeito caleidoscópico, que se torna estroboscópico quando a “stripper” tira a peruca e definitivamente apresenta-se como um objecto, ao retirar a sua própria cabeça. O corpo, entretanto, desmonta-  -se totalmente numa espécie de espaço cósmico por onde passam depois outros corpos. Celestes em vez de humanos.

 

OLYMPIAD é uma obra pioneira de 1971, concebida pelos engenheiros informáticos Lillian Schwartz e Ken Knowlton, ambos dos inovadores Bell Labs, numa altura em que a arte computacional estava ainda nos primórdios. A música insólita de Max Mathews, também gerada por computador, acompanha esta maratona visual, lembrando as composições visionárias de Raymond Scott. Schwartz acabaria por tornar-se uma artista nuclear na criação audiovisual com computadores.

A figura do atleta que contemplamos em “Olympiad”, desenhada e animada informaticamente, e posteriormente sensibilizada em película de 16 mm com um fundo pontualmente “líquido”, como lhe chamou Schwartz, avança sempre de perfil como a Sallie Gardner de Muybridge, de outro filme dos anais que também estudava o movimento. Essa figuração computorizada do físico humano, de corpo inteiro, sempre em corrida multiplica-se. Uma multiplicação que pode representar apenas um atleta repetido ou vários atletas forjados a partir do mesmo “template”.

 

DREAM WORK é uma experiência sensorial em CinemaScope e uma homenagem à técnica cinematográfica de Man Ray, memorável pela imagem fotografada sem câmara nem objectiva das suas “rayographs” de “Le retour à la raison” (1923).

O grande manipulador Tscherkassky reinventa em preto e branco, através de efeitos diversos, o filme de terror de 1982 “The Entity”. A transformação imagética que imprime actua no corpo da película e, por consequência, nos corpos dos actores nela expostos. A banda sonora convulsa e impactante de Kiawasch Saheb Nassagh recorre a sons concretos manipulados e diferentes formas de ruído branco (já em “Outer Space”, anterior filme de Tscherkassky também materializado a partir de “The Entity”, ouvia-se um cortador de carne amplificado). Tudo ao serviço de uma imersão que já é onírica antes do sonho da mulher que vemos, e que se prolonga no pesadelo erótico desta e no metacinema do desvendamento da própria matéria fílmica.

 

CUADECUC VAMPIR, de Pere Portabella, é um “making of” poético do filme de 1970 de Jesús Franco, “El conde Drácula”, uma das múltiplas adaptações do famigerado romance gótico de Bram Stoker.

Do cinema clássico europeu e de Hollywood aos banhos de sangue de modestas produções “gore”, vampiros, lobisomens, “zombies” e outras personagens de filmes de terror são corpos fantásticos transformados que se impuseram no imaginário colectivo durante o século passado. Corpos duplamente transformados porquanto o resultado da metamorfose física do humano no monstro, que a ficção impõe, é representado pelo corpo do actor, que é um corpo previamente transformado. Visto toda a interpretação dramática ser uma transformação corporal, do actor na personagem. E é, em grande medida, essa transformação dos intérpretes e a transfiguração no “plateau” de todo o domínio da ficção pelo cinema (o “décor”, a iluminação, tudo o que se finge para a câmara), que “Cuadecuc vampir” ausculta invulgar e brilhantemente. Ao fazê-lo, vampiriza o filme de Jesús Franco. Possui-o por completo para revelar os artifícios da construção ficcional do cinema.

Plasticamente o filme de Portabella também é raro. As sobreexposições abundam, e foi utilizada película a preto e branco de alto contraste e granulada, que emula a cor, o “chiaroscuro” e a patine do mais lendário filme de vampiros, “Nosferatu”, de Murnau.

Na banda-som habita a colagem de Carles Santos de música electro-acústica espectral ou cortante, sonoridades concretas e até “easy listening” e ópera, sem qualquer relação óbvia com as imagens. Reforçando a estranheza e mistério do filme. No mesmo sentido ocorre a ausência de palavras quando se observam os actores falando. Um silenciamento interrompido quando no final escutamos Christopher Lee.

Despido de caracterização, o ícone vampiresco da Hammer fecha o filme com a leitura da morte do conde Drácula escrita por Stoker, antes de nos enviar um olhar penetrante num plano “zoomado” até ao “close-up”. Olhamos nesse momento em silêncio para Lee, e é a personagem, cuja morte acabou de contar, que também vemos. Ouve-se de seguida “corta”, e o filme vai a negro e acaba. Ficando-nos na retina um olhar tão dramático como o último do conde, descrito segundos antes.

É inescapável ainda a dimensão política de “Cuadecuc vampir”. As filmagens de Jesús Franco e de Portabella ocorrem ainda antes da morte de outro Drácula, também com o apelido Franco, o ditador espanhol do verdadeiro terror, o “generalíssimo” Francisco Franco. Alguém que vive simbolicamente na personagem vampírica de Christopher Lee, como em Eisenstein existia subliminarmente Estaline em Ivan, o Terrível.

 

 

A 5.ª SESSÃO, e derradeira do programa, reúne vários filmes sob o signo da morte. Porém, começa com um filme sobre a vida. O início da vida. Segue-se uma obra de vídeo digital sobre o envelhecimento. Os restantes filmes olham a morte de frente e jogam com ela xadrez.

 

VIDA guarda diferentes rostos sofridos de mulheres em trabalho de parto. Pelechian não filma os nascimentos em si, acto documental que deu cenas memoráveis noutros filmes – “vide” “All My Babies” (1953), de George C. Stoney, ou “Milestones” (1975), de Robert Kramer e John Douglas −, antes segue para o banho de um recém-nascido, magnífico baptismo de luz e cor. Não será casual ser este o primeiro filme colorido do mestre arménio…

A banda sonora, sempre fundamental em Pelechian, é toda de uma ária da “Missa de Réquiem”, de Verdi. Paradoxo assaz interessante por ser um excerto de uma obra fúnebre num filme que celebra a vida. Liga-se aqui vida e morte como nesta sessão também fazemos.

O filme fecha com retratos de duas mães com seus filhos, depois de uma elipse que podemos assumir com o tempo que fez as crianças crescer. E no último plano temos a imagem cristalizada pela montagem, remate de obra tipicamente pelechiano, de uma mãe com uma criança ao colo, em que ambas dirigem-nos os seus olhares. São todas as mães e crianças que vimos em “Vida”. São todas as mães e crianças do mundo.

 

DANIELLE é um “time-lapse” impossível do envelhecimento humano. Só possível como recriação de tempo acelerado através da tecnologia digital deste século. Vemo-lo diante dos nossos olhos, cara a cara, num plano-sequência surpreendente com a menina, que vai ganhando anos até chegar a idosa.

O grande feito deste clipe é a forma como o CGI liga eficazmente imagens de diferentes familiares do sexo feminino, com semelhanças faciais e idades distintas, traduzindo visualmente uma só pessoa ao longo da vida. Em quarto singelos minutos.

Ao observarmos este rosto que se transforma, é impossível não sentir o esmagamento pela nossa finitude, que é também o que vemos na tela.

 

THANATOPSIS, como o poema homónimo de Bryant, é uma reflexão sobre a morte, acepção da própria palavra em grego. É um trabalho audiovisual que explora a dança filmada, o efeito estroboscópico da velocidade de obturação baixa e a dupla exposição. Traços comuns de outros filmes de Ed Emshwiller, que descreveu “Thanatopsis” como “a confrontação de um homem com o seu tormento”.

Como noutras obras de “Corpo Transformado”, a banda-som inclui um batimento cardíaco, ao qual Emshwiller acrescenta ruídos de serra eléctrica, como que dando continuidade às experiências com “intonarumori” do futurista Luigi Russolo.

 

THE ACT OF SEEING WITH ONE’S OWN EYES foi resumido exemplarmente da seguinte forma por Hollis Frampton, como Brakhage, figura importante do cinema “avant-garde” americano. “Stan Brakhage, entra com a sua câmara num dos lugares esquecidos e terríveis da nossa cultura, a sala de autópsia. Um local onde inversamente a vida é estimada, pois existe para afirmar que nenhum de nós pode morrer sem saber-se exactamente por quê.”

O impressionante registo MOS (sem som) de Brakhage é cru e na linha do seu pensamento sobre o cinema. A saber, via “Metaphors on Vision”, seu texto teórico mais conhecido: filmar é procurar o equivalente da visão de uma criança, antes do conhecimento da cultura visual e nomeadamente da perspectiva, que segundo Stan Brakhage impõe uma insuportável relação proprietária ao visível.

Este filme é parte da trilogia conhecida por “Pittsburgh Documents”. Para o autor, “document” opõe-se a “documentary” por traduzir uma observação subjectiva, e não objectiva, que era o que o documentário espelhava. Brakhage defendia assim uma abordagem documental fenomenológica.

 

FUNERAL OF DYLAN THOMAS é uma actualidade muda da British Pathé, filmada no País de Gales, de onde era originário o poeta que escreveu alguns dos versos mais memoráveis sobre a morte nos poemas “Do not Go Gentle into that Good Night” e “And Death Shall Have no Dominion”.

Terá contribuído para o seu falecimento precoce o consumo excessivo de álcool, essa gasolina de tantos corpos transformados. Esta é, pelo menos, a lenda que ficou. Dezoito whiskies de tacada no White Horse Tavern, em Nova Iorque, que lhe abriram o caminho para a morte.

Este curto “newsreel” dá-nos o silêncio da despedida ao grande poeta dionisíaco, no decurso da derradeira transformação do corpo, entregue à terra.

 

PASQUA IN SICILIA é um resgate etnográfico para memória futura da celebração da Páscoa, de meados do século XX, em três aldeias sicilianas, que nos faz lembrar tradições portuguesas.

Em San Fratello, homens transformam-se por máscaras e trajes coloridos, semelhantes aos caretos transmontanos, em judeus satânicos. Em Delia, como Manoel de Oliveira fará posteriormente no início da década de 60 em “Acto da Primavera”, Vittorio De Seta filma uma encenação popular da Paixão de Cristo, na qual o messias, primeiramente encarnado num homem, ganha o corpo de um boneco de madeira quando sobe à cruz. Em Aidone, no domingo pascal, há outros bonecos do folclore religioso, tão grandes e animados como os gigantones lusos, mas mais velozes, estranhos e misteriosos, que representam apóstolos.

 

FOREST OF BLISS foi rodado em Varanasi, ainda hoje conhecida por Benares, cidade sagrada de muitos templos, sendo o maior deles o rio Ganges, no qual se depositam os mortos hindus. É um lugar de peregrinos, onde se vai morrer ou cumprir ritos que favoreçam a vida depois da morte de entes queridos.

Estamos perante outra meditação sobre a morte, que, como todas, é também uma meditação sobre a vida. O mote do filme de Robert Gardner é-nos dado logo no seu início, depois de um assombroso plano de uma matilha atacando um cão, quando se lê que tudo no mundo come ou é comido. Trata-se de uma citação da tradução do sânscrito por Yeats dos “Upanixades”, textos da filosofia hindu. E esse é o único verbo, além do título, créditos e referência geográfica, para um espectador que não compreende o que dizem os indianos. A sua condição é reforçadamente a de um estrangeiro, uma vez que o autor declinou a tradução das falas.

Robert Gardner começou por ser antropólogo e acabou poeta. Foi um dos fundadores do Film Study Center de Harvard, farol fundamental do cinema etnográfico, e posteriormente teve contacto privilegiado com figuras do cinema experimental norte-americano na qualidade de apresentador, durante vários anos, do programa televisivo “Screening Room”, que poderá explicar em parte como o académico virou pleno artista. Essa progressão é clara na sua filmografia, que partiu da abordagem clássica da antropologia visual, comentando cientificamente a alteridade, para o cinema documental magicamente observacional desta “Floresta do Êxtase”, em que nada se explica. Antes se sugere pelo fino manto da poesia das imagens, que mantém semi-velados os significados das acções de pessoas e animais. É um nevoeiro, como o que aqui vemos soberbamente fotografado sobre o Ganges.

 

Programação e texto: Jorge de Carvalho, KINO-DOC