, ,

“CONHECEMO-NOS NA REALIDADE VIRTUAL?” POR JORGE DE CARVALHO, DO KINO-DOC, NO PÚBLICO

Partilhamos uma reflexão que Jorge de Carvalho, do KINO-DOC, escreveu no jornal Público, tendo como ponto de partida “We Met in Virtual Reality”, um documentário filmado numa realidade virtual, que levanta várias questões sobre o presente e o futuro.

O texto que hoje saiu impresso é uma versão sintetizada dos dois artigos que se encontram abaixo:

https://www.publico.pt/2023/01/14/opiniao/opiniao/conhecemonos-realidade-virtual-1-2035082

https://www.publico.pt/2023/01/15/opiniao/opiniao/conhecemonos-realidade-virtual-2-2035098

Para aqueles que não são assinantes do Público segue-se esta reflexão integral num único texto:

 

CONHECEMO-NOS NA REALIDADE VIRTUAL?

 

Fechou-se 2022, e pouco ou nada se escreveu sobre We Met in Virtual Reality (Conhecemo-nos na Realidade Virtual), saído a meio desse ano e disponível na HBO Max. Não é um bom filme, longe disso, mas importa ver aquele que é um documentário pioneiro inteiramente rodado dentro de uma realidade virtual (RV). Diz-nos certamente muito sobre o futuro, mas também sobre o mundo em que vivemos hoje, já bastante dominado pelos “deuses” de Silicon Valley, que se preparam, uns com mais sofreguidão que outros, para explorar o admirável mundo novo da RV e de uma utopia transumanista que movimentará muitas contas bancárias.

 

Mark Zuckerberg continua a apostar tudo no metaverso, que propõe transportar a RV para uma sofisticação nunca antes vista, mas que é para já, antes de tudo, um buraco negro que engole milhões de dólares. Muitos consideram uma aposta suicida. Elon Musk, mais cauteloso neste domínio (e ganhou por certo ponderação com a desastrosa compra do Twitter), acredita na conjugação ainda distante entre RV e a Neuralink, o seu laboratório de neurotecnologia que visa implantar em cérebros humanos chips que permitirão uma imersão na RV. Soa a ficção científica, mas poderá ser o futuro, que definitivamente será pós-humano.

 

O estranho objecto audiovisual que é We Met in Virtual Reality dá-nos a ver a RV paleolítica do jogo electrónico VRChat, onde “se pode ser” outra “pessoa” (“Podes ser quem sempre quiseste ser.”, diz-se no trailer). Escolher um corpo idealizado, mudar de sexo, não ter sexo, ser alguém completamente diferente da realidade. Os avatares dos participantes do jogo espelham uma variedade imaginativa de virtualidades identitárias. Desde quimeras (fisionomias humanas com cauda e orelhas felinas parecem ser as favoritas), cães falantes e outras figuras irreais que remetem para os universos sci-fi e dos comics. A estética é devedora do animé, com figuras femininas recorrentemente sexualizadas de forma explícita e corpos masculinos titanicamente musculados. Uma imagética que reflecte ideais físicos das pessoas que estão por trás desses avatares, e coincidentemente representações do imaginário da cultura de massa. A estas figurações do corpo junta-se a frivolidade do discurso, reforçando todo um ambiente de reality show. A ressonância da televisão é evidente também em cenas de estilo videoclipe ou na dispensável música dramatizante em passagens mais emocionais.

 

Num mundo paralelo totalmente virtual, a câmara do filme também o é. Joe Hunting, o realizador, adicionou ao seu avatar, silencioso e nunca visível, a opção de registo de câmara (criada por uma utilizadora, que, como outros da comunidade VRChat, contribui para a evolução do jogo). A filmagem observacional e com talking heads foi garantida com os normais controlos fotográficos de uma câmara (foco, exposição, distância focal, etc.), o que emula de forma curiosa uma câmara real. No entanto, o grafismo, como é normal num jogo electrónico, é pouco orgânico e tem pontuais distorções que ampliam o carácter postiço da imagem, também evidente nos próprios avatares campy e de semblantes inexpressivos. A sensação de artificialismo aumenta assim nos momentos de maior pathos, atingindo o zénite nos planos em que se chora e não se vêem lágrimas.

 

We Met in Virtual Reality é um documentário feito com avatares (isto é, personagens), sendo, por isso, forçosamente uma obra ficcional. O seu enredo é desenvolvido mais por aqueles do que pelo realizador, que nunca deixa de ser um documentarista de uma ficção, que ainda assim ausculta as vidas daqueles que movimentam os títeres do VRChat. E esse traço antropológico é o mais interessante do filme: percebermos um pouco quem são as pessoas que participam neste jogo, e quais as suas motivações para fazerem parte de uma RV. As conclusões, contudo, são inquietantes. Em grande medida a mensagem do filme, que tem uma dedicatória final à comunidade do jogo, é que a RV ali experienciada não é um mero escapismo, mas algo fundamental e estruturante na vida dos seus participantes, e que esse mundo paralelo é mais positivo que o mundo real.

 

Ouvimos jogadores do VRChat sublinhar a importância da plataforma durante as quarentenas do coronavírus (na RV não existe a agrura da contaminação de COVID ou de outras doenças transmissíveis social ou sexualmente). Mas os elogios vão muito além dessa circunstância. Diz-se, por exemplo, que as amizades ali feitas chegam a salvar vidas reais (o suicídio implícita ou explicitamente é mais do que uma vez abordado). Numa passagem, a figura de uma jovem mulher expõe a vantagem dos outros participantes do jogo não saberem aspectos da sua vida concreta, e como o VRChat salvou-a do alcoolismo. Fala-se também de um apaziguamento que a RV, onde não há as expectativas da sociedade real, transmite aos seus frequentadores. E, acima de tudo, fala-se muito de amor nas relações de amizade e nos vínculos românticos da comunidade virtual, que se desejam prolongar à realidade, mesmo quando os envolvidos vivem separados por milhares de quilómetros.

 

O filme conclui-se com a protagonista principal (uma professora de linguagem gestual com um contributo que parece bastante edificante para utilizadores surdos do VRChat) afirmando platonicamente que o facto de duas pessoas que se amam na RV não sentirem o toque uma da outra só potencia o apreço que têm pela “cousa amada”, apaixonando-se puramente pela sua personalidade. Referindo candidamente que “quando estás na RV, vês uma pessoa simplesmente como ela é”. Reforçando, de seguida, a visão idílica de que aquele lugar que não existe fisicamente é um espaço para as pessoas serem mais “abertas e fiéis a si mesmas”.

 

We Met in Virtual Reality incorre numa perspectiva assaz leviana e distorcida perante a intrincada dimensão do ciberespaço que retrata. Só a expressão “ver uma pessoa”, aludida acima, é todo um problema. O que é visto é um avatar, modelado pela pessoa que o comanda, cuja própria voz pode ser alterada. Permitindo, por exemplo, a menores de idade passarem por adultos.

 

Sobre esta hiper-realidade opaca com vastas possibilidades de (re)criação disponíveis, em que narcisicamente se é Pigmalião de si mesmo, levanta-se então a seguinte pergunta: como podemos conhecer quem está do outro lado?

 

Numa época marcada pela contrafacção no teatro das redes sociais e pelo desligamento do real, em que telefones móveis e outros dispositivos (com tudo aquilo que nos dão e facilitam) alimentam uma profunda alienação (ainda mais inquietante quando esses gadgets estão nas mãos de crianças e adolescentes), é liminarmente desastroso o discurso laudatório perante a RV que o filme comporta.

 

Sabemos que a RV pode ser um lugar para uma actividade sobejamente criativa. Tal foi a relação de um visionário do cinema, Chris Marker, com o Second Life, famoso irmão mais velho do VRChat. Percebemos que um videojogo pode ir além do mero medium lúdico, como mostrou o artista visual Bill Viola na sua incursão no gaming na primeira década deste século (experiência com contornos filosóficos que no domínio da RV teria um aliciante potencial). Todavia, existem evidentes perigos quando o mundo virtual se impõe como sucedâneo da vida, nomeadamente numa altura em que a interpretação da RV como terreno endémico de jogos como o VRChat ou o Second Life está já ultrapassada.

 

A RV, entendida pelo Sr. Zuckerberg para o metaverso, é mais uma proposta de extensão da vida ou de vida paralela, com um envolvimento sensorial aprofundado (já se estará para além da tela), sustentada por uma economia digital montada à volta de criptomoedas e NFT. Entretanto, os prejuízos colossais associados ao parto difícil do metaverso sonhado pelo criador do Facebook, ainda com muitas indefinições tecnológicas, e a crise actual das criptomoedas levantam copiosas dúvidas sobre esse modelo.

 

Porém, não é preciso ser Cassandra para saber que as sociedades humanas viverão também nas realidades virtuais, agravando-se o impacto dos algoritmos no tratamento de dados e o controlo político da opinião (a nossa pegada digital será maior), agudizando-se a desinformação (que só pode crescer com a distância perante o real) e os problemas de saúde mental e física de quem se ausenta da vida palpável clássica. A nossa relação com os outros e com os acontecimentos, as memórias, a comunicação, a criação… tudo será diferente. Da sociedade do espectáculo, de que falava Debord, passaremos ao espectáculo da sociedade. Tornar-nos-emos intérpretes de um espectáculo permanente e vivido socialmente, onde não faltarão veículos eficazes do consumismo, com todas as implicações para se falar de um novo estádio da sociedade capitalista. O indivíduo será como nunca uma imagem. Mais que espectador será actor mas sempre consumidor.

 

Para além dos malfazejos está claro que maravilhosos paraísos artificiais ficarão ao nosso alcance. Excelentíssimas paisagens, encontros surpreendentes, mares de sensações, que encontraremos do outro lado do portal, onde o avatar que somos não terá de ter as nossas limitações físicas (porque não voar, mudar instantaneamente de corpo ou de lugar?). Mas urgirá uma cibercultura consciente e saudável, que promova o equilíbrio entre os dois universos, real e virtual, e a noção que o virtual, por mais interactivo e realista que seja, nunca será o real, e que a nossa relação com o espaço material que nos rodeia e com o nosso corpo é vital. Perder isso fará de nós menos humanos.

 

Com esta transformação civilizacional coloca-se o quesito de como cada um irá lidar com o carácter viciante da RV, onde tudo estará facilitado, ao contrário da realidade, que é complicada. Lidar no dia-a-dia com as mesmas pessoas em casa ou no trabalho é exigente. O virtual é e continuará a ser, por excelência, o território das fantasias e do hedonismo, colonizado ou até concebido por multinacionais ávidas em fazer-nos consumir. Quem manda em grandes negócios, como o sexo e os psicotrópicos (legais ou ilegais), capitalizará o maná de experiências imersivas cada vez mais avançadas, e fomentará um apelo constante para vivermos na RV, que decerto será habitada por formas crescentemente complexas de inteligência artificial, mais uma moeda com uma face luminosa e outra negra. Qual boceta de Pandora para as gerações futuras esta última. Lembram-se do HAL de Kubrick e Arthur C. Clarke?

 

A evolução científica e tecnológica sempre trouxe vivas discussões éticas e epistemológicas, e futurologias entre vantagens e desvantagens, ordem e entropia, associadas aos efeitos das invenções humanas. Toda uma dialéctica nervosa que costuma pacificar-se quando o novel fenómeno científico ou tecnológico passa a fazer parte das nossas vidas. Contudo, há invenções, como a energia nuclear, que nunca deixarão de nos preocupar. A RV parece ter esse destino.

 

Ademais da visão problemática de Baudrillard e de outros teóricos sobre os simulacros, ou do prisma nebuloso sobre os mesmos que o romance fantástico de 1940 A Invenção de Morel, de Bioy Casares, já cultivava, a literatura cyberpunk de William Gibson e de Neal Stephenson nutriu a desconfiança sobre os mundos de simulacros da era digital, amplificada no cinema pelos blockbusters inspirados na imaginação presciente desses escritores. Tanto na obra mais popular de Gibson, Neuromancer, de 1984, como na de Stephenson, Snow Crash, de 1992, a RV é mais apelativa do que a realidade, que é pintada como um pesadelo futurista.

 

Actualmente, num século XXI de mutações vertiginosas, muitas delas relacionadas com a digitalização da vida humana, já não estamos tão longe dessas distopias cyberpunk. As democracias têm fraquejado, o manto da pós-verdade vai imperando, surgem variantes de pseudo-eventos que Daniel Boorstin não imaginou, o controlo social tecnológico prolifera em regimes autocráticos, com a China como cabeça desse dragão, e é alarmante o comportamento adictivo de tantos com as máquinas digitais, cujas telas mostram amiúde o vazio existencial das sociedades contemporâneas.

 

A RV é inescapável como elemento do nosso futuro. O desafio será lidar com ela sabendo quem somos. Conhecendo-nos a nós próprios de forma a não nos perdermos nos seus labirintos mágicos. E o terreno desse auto-conhecimento deverá ser a realidade. Dificilmente conhecer-nos-emos melhor no baile veneziano que é a RV. Mas valerá a pena continuar a filmar documentários nela, como se fez em We Met in Virtual Reality, e reflectir novas e complexas expressões humanas. Valerá a pena, como nunca, filmar e ver documentários e outros filmes que se relacionem com a realidade num mundo cada vez mais alheado desta.

 

 

Jorge de Carvalho

Cineasta e professor do núcleo de cinema documental KINO-DOC