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DIRECTO E VERDADE O CINEMA: PROGRAMA KINO-DOC ESTE MÊS NA UNIVERSIDADE DO PORTO

Chama-se “Directo e Verdade o Cinema” e é mais um cartaz de filmes na Universidade do Porto com curadoria do KINO-DOC.

Sextas-feiras, 5, 12, 19, 26 de Janeiro 2024, 21h30. Entrada livre.

Exibições na Casa Comum, Reitoria da Universidade do Porto
Praça Gomes Teixeira, Porto

Apoio Doclisboa

 

DIRECTO E VERDADE O CINEMA reúne documentários que ajudam a perceber os conceitos gémeos Direct Cinema e Cinéma Vérité, raiados entre os anos 50 e 60 do século passado, quando a portabilidade audiovisual se impôs, e profetizados em filmes de épocas anteriores. Duas expressões éticas e filosóficas da relação do cinema com a realidade, em que esta se revela meramente pela observação (o cineasta como uma mosca na parede do cinema directo) ou, pelo contrário, essa revelação se cumpre pela intervenção de quem filma sobre o que filma (o cineasta como uma mosca na sopa do Vérité). Dois credos que se mantêm essenciais no entendimento do documentário contemporâneo.

Na 4.ª e última sessão, “Divine Horsemen: the Living Gods of Haiti”, de Maya Deren, é reinterpretado numa edição de Jorge de Carvalho, que fez também montagens curtas de filmes maiores para a mesma sessão.

 

 

Filmes com legendas em português

Dia 5 de Janeiro, sexta-feira, 21h30

PRIMARY (1960), Robert Drew, Richard Leacock, D.A. Pennebaker, Albert Maysles

CHRONIQUE D’UN ÉTÉ (1961), Jean Rouch, Edgar Morin

 

Dia 12 de Janeiro, sexta-feira, 21h30

POLICE (1958), Terence Macartney-Filgate

POUR LA SUITE DU MONDE (1963), Pierre Perrault, Michel Brault

 

Dia 19 de Janeiro, sexta-feira, 21h30

PORTRAIT OF JASON (1967), Shirley Clarke

NOITE DE NATAL EM ST. PAULI (1968), Klaus Wildenhahn

 

Dia 26 de Janeiro, sexta-feira, 21h30

PLACE DES CORDELIERS À LYON (1895), Louis Lumière

LA SORTIE DE L’USINE LUMIÈRE À LYON (1895), Louis Lumière

SAÍDA DO PESSOAL OPERÁRIO DA FÁBRICA CONFIANÇA (1896), Aurélio da Paz dos Reis

CINEMA-VERDADE N.º 1: CRIANÇAS ESFOMEADAS (1922), Dziga Vertov

HOUSING PROBLEMS (1935), Arthur Elton, Edgar Anstey, Ruby Grierson

THE MEMPHIS BELLE (1944), William Wyler (edit: Jorge de Carvalho)

ALEMANHA 1945 (1945), George Stevens (edit: Jorge de Carvalho)

ATROCIDADES NAZIS (1945), Roman Karmen (edit: Jorge de Carvalho)

DIVINE HORSEMEN (1947-51), Maya Deren (re-edit: Jorge de Carvalho)

EMERGENCY WARD (1952), Leo Hurwitz, Fons Ianneli

TENTATO SUICIDO (1953), Michelangelo Antonioni

ISOLE DI FUOCO (1954), Vittorio De Seta

JAZZ DANCE (1954), Roger Tilton

 

 

Sonhei em fazer um filme sobre as 24 horas da vida de um casal qualquer, de uma profissão qualquer… Com uma aguda inquisição visual, novos misteriosos aparelhos permitem captá-los sem que eles o saibam durante essas 24 horas, sem nada deixar escapar: o seu trabalho, o seu silêncio, a sua vida íntima e amorosa.

Fernand Léger, “À propos du cinéma”, artigo publicado em 1931.

 

Com a necessidade tecnológica de filmar os palcos da 2.ª Grande Guerra, passou a ser comum utilizar câmaras portáteis e leves. Os 16 mm de película foram-se impondo, e deixaram de ser coisa de amadores, o tripé tornou-se dispensável, e reduziu-se drasticamente o orçamento e a equipa técnica. Desbravava-se caminho para o cinema documental e ficcional do futuro, sustentado por “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, como escreveu na pedra Glauber Rocha. Caminho esse que para ser percorrido precisou de um engenho sonoro que veio mais tarde, o gravador de campo, e também do sincronismo entre este e máquina de filmar.

Aí chegado o audiovisual aproximou-se do sonho de Léger. “Novos misteriosos aparelhos“ ainda não eram do tamanho de uma mosca, mas numa mosca como alegoria cinematográfica podia-se começar a acreditar. Eram os tempos das gloriosas aventuras ficcionais de câmara na mão de Cassavetes, de Godard e Coutard, quando duas escolas documentais ergueram suas bandeiras, cada uma no seu continente. Na América, o movimento posteriormente conhecido por Direct Cinema, cuja bandeira foi o filme “Primary” (1960), da Drew Associates. E na Europa, o Cinéma Vérité, cujo estandarte foi a película “Chronique d’un été” (1961), surgida do encontro entre o cineasta e etnólogo Jean Rouch e o sociólogo Edgar Morin. Estes dois filmes matriciais, exibidos neste programa na 1.ª sessão, são indispensáveis para perceber os dois entendimentos distintos do cinema documental moderno que aqui se convocam.

“Chronique d’un été” inicia-se com o questionamento de Rouch sobre o condicionamento do comportamento humano perante a presença da câmara. A essa questão ambos os autores desse documentário responderam com um cinema participativo, em que se acredita que a revelação humana é catalisada pela presença da câmara (que impõe uma verdade mais profunda sobre a pessoa filmada, como concluíram Rouch e Morin) e pela intervenção de quem filma (entrevistando, conversando, provocando). Essa é a dialéctica do Cinéma Vérité, em que a mosca documental é intrusiva, pousando na sopa para despertar reacções.

Poderá dizer-se que “Primary” respondeu a essa mesma questão um ano antes com uma linguística assaz diferente. Para Robert Drew, Richard Leacock, D.A. Pennebaker e Albert Maysles, a equipa de filmagens deveria assumir uma conduta meramente observacional, não interventiva. O documentarista queria-se “invisível”. Nas famigeradas palavras de Leacock, “like a fly on the wall”[1]. Para Frederick Wiseman, herdeiro da Drew Associates, a presença aturada da câmara faz com que esta deixe de condicionar quem é filmado. Essas são as crenças fundamentais do Direct Cinema, em que a mosca é, portanto, discreta[2].

No entanto, cinema directo e cinema verdade sendo diferentes, têm vários aspectos em comum. São os dois expressões da portabilidade e sincronismo de imagem e som, que levaram definitivamente o documentário para a rua; traduzem ambos uma sensação de espontaneidade, autenticidade e vida real no espectador (daí também a típica rejeição de luz acrescentada); começaram por secundarizar a locução e a música (tenuemente ainda presentes em “Primary” e “Chronique”) até as rejeitarem; dependem em muito da montagem para o desenvolvimento narrativo; um e outro possuem uma dimensão antropológica, ética e social, quando não política (mais evidente no Vérité pela sua natureza afirmativa).

Apesar desta sistematização dos conceitos de cinema directo e cinema verdade, que partilhamos com muitos estudiosos, desde o início dos anos 1960 que falar de um ou de outro é confuso e propenso a equívocos. Muitas vezes são apontados como sinónimos, outras vezes características de um são assumidas como de outro. A designação “cinéma vérité” foi forjada por Edgar Morin ainda em 1960, aludindo ao Kino-Pravda (“cinema-verdade”) de Dziga Vertov. Do lado americano, a expressão “direct cinema” passou a ser adoptada por Albert Maysles em 1964, antes disso Drew referia-se a esse “teatro sem actores” que preconizava como “candid drama”. Michel Brault, Pierre Perrault e outros documentaristas canadianos assumiam-se praticantes de “cinéma direct”, considerando a expressão “cinéma vérité” pretensiosa[3].

Para além da Inglaterra do Free Cinema (surgido em 1956, do qual se destaca “We Are the Lambeth Boys”, longa documental de Lindsay Anderson, de 1959), foi no Canadá pré-“Révolution tranquille”, no National Film Board (NFB), que novas formas expressivas do documentário moderno de câmara à mão brotaram ainda na década de 50 (já visíveis em “Corral”, curta de Colin Low, de 1954). E é com duas produções do grande laboratório que era o NFB que se compõe a 2.ª sessão deste programa. “Police” (1958), um episódio da série televisiva seminal “The Candid Eye”, realizado por Terence Macartney-Filgate (que mais tarde assumiria funções de operação de câmara e montagem em “Primary”), e “Pour la suite du monde” (1963), um filme com autoria de Pierre Perrault e Michel Brault, este último autor, com Gilles Groulx, do importante exercício do NFB que foi “Les raquetteurs” (1958), e mestre “cameraman” “québécois”, que também filmou “Chronique” e revelou uma técnica inovadora de movimento de câmara perante os seus colegas franceses, mesmo aqueles que já colocavam a câmara ao ombro, como Raoul Coutard (outro responsável pela imagem do histórico filme de Rouch e Morin).

Na 3.ª sessão são exibidos dois documentários posteriores a “Primary” e “Chronique”. “Portrait of Jason” (1967), de Shirley Clarke, e “Noite de Natal Em St. Pauli” (1968), de Klaus Wildenhahn. Exemplos de Vérité na América e de Direct Cinema na Europa, e ambos filmados numa só noite sob o signo da expressão latina “in vino veritas”, atribuída ao poeta Alceu de Mitilene, uma antiga máxima que já respondia ao “problema da verdade” como colocado por Morin. O sociólogo francês, aliás, pôs em prática a sua teoria psicossociológica da comensalidade em “Chronique”, juntando à mesa os participantes e oferecendo-lhes vinho, de forma a estimular o à-vontade, contornando eventuais inibições, e promover diálogo e afeição, facilitando o desenrolar do estudo proposto pelo filme.

A 4.ª sessão é composta por diversos filmes, desde a origem do cinema, em finais do século XIX, até à primeira metade da década de 1950, que já anunciam os vindouros cinemas directo e verdade, pela escolha da observação como acto cinematográfico ou, por outro lado, pela interacção verbal de cineastas com protagonistas, ou ainda pela mobilidade da câmara potenciada pelo conflito global de 1939-45. Excepção é o canonizado “primeiro filme da História do Cinema”, “La sortie de l’usine Lumière à Lyon” (1895), de Louis Lumière, aqui presente como contraponto. Incluída nesta sessão apresenta-se a nossa releitura de “Divine Horsemen: the Living Gods of Haiti”, de Maya Deren, que filmou de câmara à mão a dança e as possessões do vudu haitiano entre 1947 e 1951, um filme montado e tornado público muitos anos depois da morte da autora. Fazem parte ainda desta sessão, montagens curtas também da nossa lavra de filmes maiores. São os casos de “The Memphis Belle”, “Alemanha 1945” e “Atrocidades Nazis”.

 

 

1.ª SESSÃO (5/1)

PRIMARY é o resultado do trabalho colectivo que juntou o produtor Robert Drew aos cineastas Richard Leacock, D.A. Pennebaker e Albert Maysles, todos autores de filmografias que se foram impondo como fundamentais na História do Documentário. Concretiza-se, em grande medida, pela sagacidade de Drew, na altura editor da revista Life, em desenvolver um documentário que reportasse, sem dar opinião, sendo no fundo a expressão cinematográfica dessa publicação de referência do fotojornalismo, cumprindo uma filmagem não-participativa, mas que registasse de perto os protagonistas ao nível do seu olhar[4]. Para tal foram precisos avanços tecnológicos[5], nomeadamente o sincronismo entre imagem e som, assegurados por Leacock e Pennebaker, que era também engenheiro, ligado à electrónica.

E assim, com uma narração mínima (“Narration can be a killer!”, dizia Drew) apresentou-se as eleições primárias do Partido Democrata no Wisconsin, nas quais se opunham o político “old school” Hubert Humphrey e o jovem senador sensação John F. Kennedy, sem entrevistas ou outras formas de interpelação aos candidatos. O resultado foi um produto audiovisual pioneiro, com cenas nunca antes gravadas em filme, como os ainda hoje impactantes momentos (imagine-se à época) que antecedem a sessão de fotografias de Kennedy e a transmissão televisiva com Humphrey.

Sobressai inevitavelmente no filme a figura de Kennedy, muito pelo trajecto político futuro, por toda a mitologia Camelot associada e pelo fatídico fim, mas é por de mais claro o impacto público que já na altura possuía, nas palavras de Norman Mailer, o “herói que a América precisava”. O pináculo cinematográfico desse magnetismo cumpre-se no extraordinário, e hoje famoso, plano “plongée” de Maysles que persegue J.F.K., num auditório sobrelotado, no meio do público, sem um olhar para a objectiva, até ao palco, quando a câmara se torna subjectiva, como se tratasse do olhar do futuro presidente perante a grande ovação.

“Primary” foi apenas transmitido nos E.U.A. em pequenas estações regionais, limitando o seu impacto. Para Pennebaker tal aconteceu muito por culpa de uma mentalidade de controlo que imperava nos senhores da televisão, para os quais a abordagem “mosca na parede” era um incómodo. Contudo, coincidindo com o eco positivo que o filme acabou por ter na Europa, Kennedy gostou de “Primary”, e consciente da importância do “medium” televisivo (através do qual derrotou Nixon em debate), e possivelmente também do “pathos” inerente à linguagem da Drew Associates, convidou-a a filmá-lo já na qualidade de presidente na Casa Branca. O resultado foram dois documentários transmitidos na ABC para milhões de norte-americanos. Um deles foi o histórico “Crisis: behind a Presidential Commitment” (1963), que capta em plena Sala Oval a administração Kennedy a lidar com um problema que lhe era caro, o segregacionismo.

O ciclo Kennedy da Drew Associates terminou pouco tempo depois, após o assassinato do mítico presidente, com a belíssima depuração dos princípios do cinema directo que é “Faces of November”, retrato do funeral de J.F.K., que a ABC recusou transmitir, feito de sons concretos e rostos (o silêncio que Léger refere na epígrafe deste texto).

 

CHRONIQUE D’UN ÉTÉ nasce do convite que Edgar Morin endereçou a Jean Rouch de fazerem um documentário etnográfico em Paris, e não nas paragens africanas onde Rouch habitualmente filmava. A tribo em causa eram os parisienses. O ano, 1960. E o filme seria, como diz o título, uma crónica do Verão desse ano. Morin referiu-se a este projecto como um estudo sobre a Humanidade e sobre o “problema da verdade”. O que é ser verdadeiro? O que é ser autêntico? E o que é ser isso perante a câmara, essa máquina de revelação, como entendia Vertov. Como o sábio soviético, os autores franceses recusaram a escrita de um argumento, mas não a construção narrativa, que foi muito um trabalho de edição[6].

O filme segue uma espécie de inquérito máxime à classe trabalhadora, conduzido no início fundamentalmente pela jovem Marceline Loridan, cuja candura e amadorismo à época[7] a afastam, e ajudam também a afastar o filme, do jornalismo de reportagem. Depois de questionada pela dupla de realizadores sobre como vive, Marceline e outra jovem fazem perguntas como a essencial “É feliz?”, que para ser avaliada hoje tem de se levar em conta a sombra que por aqueles tempos encobria França, por estar em guerra na Argélia – um assunto tabu e recorrentemente censurado que esta “crónica” mais adiante olha de frente dentro dos limites que permitiram a sua distribuição pelas salas de cinema.

Este “estudo sobre a verdade”, como também é caracterizado no filme, passa da rua para as casas dos entrevistados. E com a passagem do domínio público para o privado, a intimidade e a interpretação moral e política das vidas dos visados pelos próprios ganha expressão, até se chegar à discussão de temas latos como o problema da habitação, a guerra, o colonialismo ou o racismo. Entretanto – já depois de Morin assumir as perguntas e ouvir, de um camarada seu, que guarda a sua faceta mais autêntica para si próprio devido a constrangimentos sociais –, Marceline Loridan regressa à função de entrevistada numa cena com outro entrevistado, Jean-Pierre. E acontece aí perante Marceline, antes ocorrera com a italiana Mary Lou, o “momento privilegiado” teorizado por Rouch, esse instante luminoso em que a verdade humana se revela. Quem o proporcionou foi Morin quando pergunta: “Queres dizer alguma coisa, Marceline?”. E esta responde falando amarguradamente da sua relação fracassada com Jean-Pierre, acrescentando: “Queria tanto que ele não vivesse a mesma juventude que eu…”. E a câmara desce, filmando os números tatuados no seu braço, reveladores da sua condição de sobrevivente do Holocausto. Mais tarde, Marceline caminha sozinha por Paris, evocando em “off” aquele horror e conversando com o pai morto, numa sequência de planos grandiosos de Brault, quem sabe inspirado por saber que este filme iria ter como destino o grande ecrã, ao contrário dos seus trabalhos no NFB (o mesmo acontecia com a Drew Associates, que também vivia da produção televisiva).

Depois de um mosaico de cenas com diferentes protagonistas, tanto separados como reunidos pelos realizadores, que os vão interpelando (mais Morin que Rouch) ou não[8], “Chronique” conclui-se com o meta-cinema de duas discussões. A primeira numa sala de projecção sobre o próprio filme pelos seus participantes[9], em que os pontos de vista perante o estudo sobre a verdade que os envolveu geram controvérsias e, como habitualmente com a interpretação da própria verdade, as perspectivas são diversas. A segunda faz-se entre os realizadores, caminhando no interior do Musée de l’Homme (que melhor lugar para discutir a natureza humana?), concluindo que a problematização da autenticidade dos protagonistas do filme, alguns acusados de cabotinismo ou exibicionismo pelos seus pares, traduzia que “Chronique” tinha chegado a um nível de verdade que já não era quotidiana[10]. E esse era um novo e grande problema, expresso por Morin antes dos créditos finais: “Nous sommes dans le bain.”, que podemos traduzir como “Estamos em apuros.”, isto é, o filme abrira uma caixa de Pandora.

A influência de “Chronique” foi lata. Na Nouvelle Vague, vaga paralela ao Vérité, que muito retratou pela ficção a capital francesa de câmara à mão (preferindo, porém, os 35 mm industriais aos 16). Em cineastas mais dados ao documentário como Chris Marker (“Le joli mai”, um interessante contraponto parisiense ao filme de Rouch e Morin[11]). Em realizadores mais dados à ficção como Pasolini (esse desbragado inquérito sobre a sexualidade que é “Comizi d’amore” (1964) é um marco). E em tantos pontos do planeta, do Japão à América Latina, muito pela energia política daqueles tempos, que fizeram do Vérité um fenómeno mundial.

 

2.ª SESSÃO (12/1)

POLICE é um episódio que pertence a “The Candid Eye”, série documental televisiva, produto da lendária Unit B do canadiano National Film Board / Office National du Film. Fundado pelo papa do documentário John Grierson, o NFB foi berço desde meados dos anos 1950 de novas práticas da expressão audiovisual (do sincronismo de câmara à mão à animação experimental, passando pelo movimento imersivo na imagem fotográfica), que moldaram o futuro da criação documental, mas também do cinema ficcional[12]. Os responsáveis por essa espécie de reforma luterana da arte do documentário, em plena Igreja griersoniana, foram Wolf Koenig, Colin Low, Roman Kroitor, William Greaves, Claude Jutra, Gilles Groulx, Michel Brault, Pierre Perrault (os dois últimos, autores do filme seguinte desta sessão) ou o realizador de “Police”, Terence Macartney-Filgate[13].

Exibido em 1958, “Police” capta a sempre rica actividade policial, anunciando no tema e na forma posteriores obras documentais marcantes, que passaram na televisão estadunidense nas décadas seguintes:  “Law and Order” (1969), de Frederick Wiseman, “The Police Tapes” (1977), de Alan e Susan Raymond (que inspirou “Hill Street Blues”) e “Cops” (1989), do “godfather of reality TV”, John Langley. Ainda que este trabalho de Macartney-Filgate tenha ainda um certo polimento clássico, que o afasta da abordagem mais crua e observacional dessas outras obras policiais. São marcas nesse sentido os veículos da entrevista e da narração em “off” de tom didáctico (ao estilo de Grierson), e ainda a abundante presença de temas musicais jazzísticos, que ainda que “simpáticos” são dispensáveis, remetendo para a noção da “música de embalar” em documentário, como acusava Jean Rouch[14].

A frescura deste retrato das rotinas da polícia de Toronto está em registos de imagem e som de um homem-câmara, com o qual Vertov, que viveu no tempo em que a câmara dificilmente era operada fora do tripé, apenas poderia imaginar. São eles a mobilidade da máquina de filmar, as suas perspectivas inconvencionais (inesquecível o plano de tiros frontais), a câmara oculta (recorrente em episódios de “The Candid Eye”), as cenas inusitadas (a recriação de um crime através de uma maquete ou as detenções nas ruas) e ainda a conversão do carro de patrulha num dispositivo de cinema[15].

 

POUR LA SUITE DU MONDE é obra da câmara de Michel Brault. Móvel, firme e próxima dos homens (com grande-angular, a “objectiva de contacto”, como dizia Rouch). E da experimentação narrativa de Pierre Perrault, além de cineasta, escritor, radialista, caçador e, com Allan King, a maior figura do documentário canadiano do seu tempo.

É uma produção do NFB que sai em 1963, em plena Révolution Tranquille, quando no Quebeque, do qual eram originários os autores do filme, se confronta o esmagamento da comunidade francófona pela anglófona e se impõe o nacionalismo nesta província. O seu título, “Pela Continuação do Mundo” em tradução para português, revela uma resposta de resistência perante a ideia de extinção. Que logo aqui associamos à cultura quebequense que este documentário exibe: os humildes representantes da comunidade (em grande maioria na região, mas sem a riqueza e o poder da minoria anglófona), o seu francês “québécois”, os seus hábitos, crendices e misticismos. É preciso dizer que nesse resgate, próprio do cinema etnográfico, há uma atitude indisfarçavelmente política. Como noutros filmes da época de cineastas do Quebeque, reage-se perante a dominação anglófona naquela província, genericamente em todo o Canadá e também em específico no NFB, cuja cúpula apenas falava inglês e impunha uma visão de paz social no país.

Neste enquadramento ético e político, o intuito de Perrault foi o de registar – com Brault e Marcel Carrière, responsável pelo impecável som – o seu “povo dominado, e de encontrar uma identidade colectiva perdida, reprimida.”, como dele referiu Gilles Deleuze em “L’image-temps”. Nas palavras do próprio Perrault, “Eu andava em busca de um povo interpretado pelos mistérios e regido pelos profetas, como no tempo das sagas.” A sua procura era assim também de uma mitologia, produtora de uma espiritualidade que se escutava no discurso em dialecto das gentes do Quebeque (como o que se diz no filme sobre as almas ou da lua como alimento da Terra).

Para cumprir essa demanda, Perrault propôs a pescadores da ilha fluvial Île-aux-Coudres[16] irem à pesca da beluga (baleia-branca), utilizando uma armadilha ancestral, que consistia na captura deste cetáceo através de estacas, que o encurralavam durante a maré baixa. Ao ressuscitar essa velha técnica, que não se via por aquelas bandas desde 1924, este projecto documental filia-se na tradição do Robert Flaherty de “Nanook of the North” (1922), “Moana” (1926) e “Man of Aran” (1934), em que se recriaram práticas antigas de comunidades, para resgatar em película para memória futura essas mesmas práticas já extintas. O móbil narrativo, que é a ressurreição da pesca da beluga, accionado pelo documentarista insere esta obra também nos códigos participativos do Vérité, como nos é evidenciado logo num entretítulo inicial. A singularidade é perceber que o filme que se lhe segue desenvolve-se numa abordagem observacional de cinema directo, fazendo de “Pour la suite du monde” um híbrido das duas escolas abordadas nestas linhas.

À laia de outro Perrault, Charles, o grande inventor de contos de fadas do século XVII, a história do filme pode traduzir uma moralidade. O regresso à pesca da beluga com o motivo da memória perpetuada não serviu o antigo destino do animal capturado. Em vez de morto, seguiu vivo para um aquário em Nova Iorque. Donde se extrai a seguinte conclusão, que rimamos como num epílogo moral de Charles Perrault. Com os tempos perdem-se preciosas tradições, mas também ganham-se novas e boas noções. E de alimento, a beluga pôde passar a símbolo de uma comunidade que resiste mas também evolui.

 

3.ª SESSÃO (19/1)

PORTRAIT OF JASON foi rodado em 1966 durante 12 horas numa noite na “penthouse” da realizadora Shirley Clarke, no Chelsea Hotel, lugar de tantas outras noites bravas lendárias. Clarke, eminente figura do cinema independente nova-iorquino, fora influenciada pelo cinema coreografado de Maya Deren (presente na última sessão deste programa) e já no final dos anos 50 havia colaborado com cineastas da futura Drew Associates em documentários observacionais[17]. Contudo, em “Portrait of Jason” a realizadora seguiu a via Vérité, que acabou por escalar, como trataremos, para uma abordagem participativa agressiva[18].

Jason Holliday, um aspirante a artista de cabaré, fora apresentado pelo actor Carl Lee a Clarke. Companheiro à época da realizadora, Lee esteve com ela atrás da câmara que filmou este retrato, tendo uma função absolutamente determinante no desenvolvimento discursivo e emocional de Jason no filme, que se desenrola num quase solilóquio do seu protagonista, com pontuais perguntas e comentários, sempre fora de campo, da pequena equipa de cinema que se instalara no Chelsea Hotel, e de Richard, um amigo de Jason. Shirley Clarke optou por incluir no seu “cut” também as comunicações técnicas entre a equipa e o que seriam os diálogos “off the record” com Jason, traduzindo o próprio processo cinematográfico, num gesto que ecoa Godard e outros cineastas da época dados ao meta-cinema.

As gravações de Jason em película de 16 mm e na fita magnética de um gravador Nagra são um espelho brilhante das suas facetas de homem negro, homossexual, gigolô, prostituto ocasional e artista inconcretizado. Eloquente, empático e dono de uma gargalhada contagiante, Jason conquista-nos enquanto discorre sobre si e a sua vida com a capacidade de um grande “performer”. Também cativa-nos pela sua condição de refractário num mundo que lhe é, sobre vários prismas, adverso, e com o qual negoceia inteligentemente seguindo o seu lema: “Descobre o que precisas para aguentar o dia, prepara-te para o conseguir, e não chateies ninguém.”

Neste “one man show” escutamos as histórias de Jason sobre a sua actividade como empregado doméstico, que reflectem os preconceitos de classe e obviamente raciais de um país no qual o fim da segregação ainda estava por cumprir[19]. Diz um Jason irónico e sem grandes mágoas, que os patrões brancos viam-no como “um burro, um miúdo de cor estúpido” e o usavam “como um brinquedo”. Também evoca a sua conturbada infância, durante a qual se prostituiu logo aos 12 anos, e que foi marcada por um pai austero e uma mãe “impecável”, segundo Jason, perante a qual “os brancos tinham orgulho (…) porque sabia qual era o seu lugar” (outra vez o racismo). Ouvimos ainda descrições de Jason, algumas profundamente gráficas, dos seus engates e relações (entre a caricatura, o exotismo e a violência), e pormenores da sua vivência “queer” numa sociedade norte-americana pré-Stonewall, que o levou à prisão de Rikers Island. E assistimos a representações fogosas e impressivas de Jason, que se revela um mestre de muitas máscaras, como as encarnações que faz de Mae West e Carmen Jones, suas divas dilectas. Levanta-se, então, uma pergunta. Por que não consegue aquele homem talentoso, mesmo com apoio financeiro, concretizar o seu obsessivo número de cabaré, constantemente adiado?

Carl Lee, que conhecia bem Jason, explora essa questão e outras fragilidades do protagonista deste filme, provocando-o com acusações de estar à defesa, a representar, a mentir. E com uma agressividade galopante, enquanto Jason percorre num barco ébrio o rio das confissões “in vino veritas”, Lee atinge o seu amigo que tanto massacra, ao ponto de catalisar o “momento privilegiado” de que falava Jean Rouch (ao qual nos referimos a propósito de “Chronique d’un été”). Essa catarse, em que a emoção humana revela o indivíduo, acontece no final de “Portrait of Jason”, quando já se escutam as buzinas dos carros da manhã, e as lágrimas soltam-se no rosto de um Jason bêbado e drogado.

Fica, contudo, uma questão em aberto, que é fundamental no Cinéma Vérité, desde “Chronique”. Estaremos a ver o verdadeiro protagonista já sem “persona”? Ou será que o jogo de máscaras de Jason se perpetua nas suas lágrimas? Esta pergunta é reforçada, quando a meio do filme Lee pede a Jason que viva uma situação perante a câmara que o faça chorar, ao que Jason responde: “Sim, tenho que chorar.”

Carl Lee é assim o “deus ex-machina” de “Portrait of Jason”, que pela riqueza do discurso do seu exuberante protagonista, sem rédeas, trágico e divertido, cru e objectivo, constitui uma autêntica dramaturgia. Uma “literatura” improvisada, como aquela que Jack Kerouac relacionou com o sax de Charlie Parker. Jason Holliday, não conseguindo ser artista de palco como Parker, transformou este filme no seu palco, em cima do qual fez um longo solo jazzístico sobre a sua invulgar vida.

 

NOITE DE NATAL EM ST. PAULI é uma obra-prima do cinema observacional. Foi realizada por Klaus Wildenhahn, um documentarista conhecido por poucos, que desenvolveu a grande maioria da sua obra na televisão pública regional alemã NDR.

Em meados dos anos 1960, Wildenhahn entrevistou Leacock, Pennebaker e Albert Maysles, e foi profundamente inspirado por estes, conjugando essa influência com outra, a do documentarismo polaco tutelado por Jerzy Bossak e pela intitulada Escola de Karabasz[20]. Fez filmes em que deu a voz a operários, camponeses e figuras da música (Jimmy Smith, John Cage) e da dança contemporânea (Merce Cunningham e Pina Bausch), repercutindo as suas convicções de um cinema que desencadeasse, como referiu, “um campo energético” entre filmados, filmadores e espectadores, estando estes últimos libertos, sem qualquer mediação, para por eles próprios julgarem os primeiros e os segundos.

No segundo documentário desta sessão assiste-se a outra revelação humana pelo álcool filmada numa só noite de Dezembro, mas ninguém está sozinho perante a câmara como Jason Holliday, ainda que a solidão se sinta em muitos rostos. Foi rodado junto às docas da cidade de Hamburgo em St. Pauli. Um bairro emblemático, que foi poiso dos Beatles em início de carreira (e depois dos Monks), conhecido pelo seu clube de futebol sem fins lucrativos e de ideais anarquistas, pelas suas ruas com bares, muitos deles de alterne, percorridas por marinheiros, camionistas, boémios, prostitutas, proxenetas e outros marginais, que compõem ainda hoje uma atmosfera que traz reminiscências do velho Cais do Sodré lisboeta.

Foi num bar de St. Pauli, que durante 10 horas uma pequena equipa da NDR, de apenas uma câmara e três pessoas, captou dignamente uma fauna de homens e mulheres que, ou não tinham família, ou não a quiseram ter naquela noite de consoada de 1967. Gente que a essa ausência ou negação respondeu na sua maioria com uma apoteótica bebedeira. Outra motivação para tal resposta, que podemos intuir na fala de um cliente do bar, pode relacionar-se com o fantasma do nazismo, ainda bem presente naquele tempo: “Passam o Natal bêbados (…) para talvez esquecerem algumas das coisas que lhes foram ensinadas.” Nesse ambiente, também marcado por uma sofreguidão por afectos, vão-se impondo uma certa melancolia e uma tristeza por vezes desesperada, que parecem ressoar em certos temas da ”jukebox”, apesar dos sorrisos, gargalhadas e alegre vozearia, que aumentam à medida que os copos se vão virando. Daqui a máquina do cinema extrai uma amostra rica do ser humano na sua sensibilidade, companheirismo, mas também incomunicabilidade e brutidade.

Talvez porque Wildenhahn defendia que o cineasta do cinema directo deve filmar nunca “em segredo, mas abertamente[21]. Não se esconde num canto com a câmara. Antes apresenta-se ao outro jogador, o indivíduo que se filma, e este sabe que o jogo se iniciou.”, a câmara de 16 mm deste filme, que o talentoso operador Hans-Joachim Theuerkauf tinha nas mãos, parece observar a rica paisagem antropológica daquele antro exíguo de álcool e nicotina, sempre de uma “posição privilegiada”[22]. Uma câmara-mosca que parece ter-se tornado invisível, tal é o espectáculo humano que se apresenta aos nossos olhos, como na cena da prostituta, cujo marido está na prisão, aliciada por um cliente do bar que a conduz até a um homem persa, ou nas inconfidências de outro cliente que fala sobre jogo de azar após a saída de cena da polícia, cuja presença também já fora marcada por uma completa ausência de incómodo perante a câmara.

Quando o bar está prestes a encerrar e o filme com ele, a mulher que ali manda, a sóbria Elle, corre com o que restava dos convivas daquela longa comunhão dionisíaca. E ela, que se fazia dura, diz ternamente ao seu companheiro, já bastante bêbado há muito tempo: “Bela noite que foi!”[23]. E estas são as últimas palavras de “Noite de Natal em St. Pauli”, que tão bem caracterizam esta obra pela beleza da fragilidade humana que lhe é inerente. Então, com um paralítico de Elle, conclui-se o filme. E, frase repetida ao longo deste, “a vida continua”, já fora da película que a soube tão bem conter.

 

 

NÃO PERCA A SESSÃO FINAL A 26/1

 

 

Programação e textos: Jorge de Carvalho, KINO-DOC (www.kino-doc.pt)

 

 

[1] A “mosca na parede” de Leacock posteriormente inspirou a expressão feliz do estudioso Henry Breitrose “mosca na sopa”, aludindo ao Vérité.

[2] O encontro de Drew e Leacock com o Vérité numa viagem a França em 1963 atestou bem as diferenças entre as duas formas conceber o cinema documental. Disse Drew: “Fiquei surpreendido por ver os cineastas do Cinéma Vérité a abordar as pessoas na rua com um microfone. O meu objectivo era capturar a vida real sem intromissão. Entre nós havia uma contradição. (…) Eles tinham um operador de câmara, um técnico de som e cerca de mais 6 (…) homens (…). Era um pouco como os irmãos Marx. A minha ideia era ter uma ou duas pessoas, discretas, captando o momento.”

[3] O italiano Mario Ruspoli também o disse, logo em 1962, quando no Festival de Cannes associou ao seu documentário “Regard sur la folie” a nova designação “cinema directo” (2 anos antes de Albert Maysles). Para tornar tudo mais confuso, até o próprio Jean Rouch, bastante responsável por tornar famosa a expressão “cinéma vérité” de Morin, desde logo como co-autor de “Chronique”, passou a considerá-la dúbia, e a substituí-la por “cinéma direct” para continuar a referir-se à abordagem interactiva, contrária à proposta da Drew Associates. E ainda nos 1960s, no mundo francófono, começou a usar-se a expressão “cinéma direct”, aglutinando os dois conceitos.

Mais tarde, “cinéma vérité” passou a ser uma forma muito comum e pomposa em língua inglesa de designar o próprio Vérité de origem, Direct Cinema e realismo de câmara à mão em geral, banalizando-se e perdendo a acepção no sentido estritamente participativo.

O próprio Robert Drew, que definiu mais que todos os princípios observacionais do cinema directo, passou a classificar o estilo da Drew Associates como “american cinéma vérité”, diferenciando-o do Vérité europeu participativo.

[4] A proximidade perante quem se gravava, no que diz respeito ao áudio, foi interpretada por estes documentaristas da seguinte forma: o som era captado com o microfone direccional em punho e não em perche, por discrição. Dispensavam ainda auscultadores (“they make you look silly and/or remote”, Leacock “dixit”).

Já em “Chronique”, a grande inovação sonora foi a captação por micros de lapela ligados a gravadores,  transportados pelos próprios protagonistas.

[5] Drew conseguiu o financiamento da Time Inc. de um milhão de dólares, que permitiu assegurar em “Primary” o sincronismo por cabo entre câmara e gravador de som Perfectone. Pouco tempo depois adoptaram um engenhoso processo que envolveu relógios de quartzo Bulova e transmissores electrónicos “wireless”, que possibilitou o sincronismo revolucionário já sem cabo a ligar câmara e gravador. Logo em “Primary” tornaram mais leve e silenciosa a câmara Auricon de 16 mm, típica de reportagens televisivas, e colocaram-lhe um “viewfinder”, uma objectiva Zoom, um suporte para câmara à mão, e aumentaram a quantidade de película em bobine e a autonomia da câmara, tornando-a, como disse Albert Maysles, “servant to reality rather than a device used to manipulate it.” Este protótipo de sincronismo conduziu ao uso global de máquinas como a câmara Éclair NPR (evolução da Éclair KMT, utilizada em “Chronique”) e o gravador Nagra III.

[6] Morin referiu-se a “Chronique” como uma pesquisa. Ora essa pesquisa é nuclearmente desenvolvida na rodagem, estando na linha da máxima de Frederick Wiseman que ilustra a noção de projecto aberto, que os cinemas directo e verdade trouxeram para o documentário moderno: “The shooting of the film is the research. My response to that experience is what the final film is about.”

[7] Marceline estaria longe de imaginar a grande jornada pelo mundo do documentário que fez com o seu futuro companheiro Joris Ivens.

[8] O filme tem alguns momentos observacionais (não isentos de uma indisfarçável encenação aqui e ali) como a longa sequência, seguindo Angelo, um operário fabril da Renault, e que passa pelo seu local de trabalho, filmando vários outros operários. Também em “Primary” não se vêem os documentaristas a fazer directamente entrevistas, mas há uma sequência de “vox populi” no dia das eleições que sugere que estamos perante respostas a perguntas que ficaram fora da montagem. Ambas situações em que as duas escolas do novo documentário se confundem.

[9] O filme dentro do filme, comentado por quem nele foi gravado, também ocorre noutro clássico de “handheld camera”, “Gimme Shelter” (1970), realizado por Albert Maysles com o seu irmão David e Charlotte Zwerin. Dessa feita a “mise en abyme” fez-se com membros dos Rolling Stones na mesa de montagem (uma faceta participativa num documentário genericamente observacional).

[10] “O cinema não se refere à verdade. Ele instaura a sua própria verdade.”, dirá anos mais tarde Rouch ecoando a verdade fílmica de Vertov.

[11] Co-realizado por Pierre Lhomme, também vagueia por Paris, captando o “zeitgeist” mais optimista de 1962, pós-Guerra da Argélia, mas é impossível vermos este Maio “joli” sem pensarmos na bomba política e social de outro Maio parisiense que está à distância de apenas 6 anos. O contraponto com “Chronique” é também formal. Apesar de ter uma abordagem Vérité também recorre à voz “off” (da qual Marker gostava muito), Lhomme usa furtivamente a teleobjectiva para filmar pessoas e utiliza-se o efeito de “timelapse”.

[12] Que o diga Kubrick que para “2001: a Space Odyssey”, ao ver o documentário “Universe” (1960), de Colin Low e Roman Kroitor, levou noções de animação realista (outra especialidade do NFB, não fosse a casa de Norman McClaren) e a voz de HAL.

[13] Macartney-Filgate que além de ter posteriormente passado pela Drew Associates, trabalhou também com Shirley Clarke em “Robert Frost: a Lover’s Quarrel with the World” (1963), mais um exemplo das ligações entre diferentes cineastas da revolução cinema directo / verdade de diferentes quadrantes (Macartney-Filgate, além de vir do NFB, era originário de Inglaterra).

[14] Sempre um bom antídoto teórico para a, ainda hoje, recorrente música acessória em documentário, quando a sua função não é outra além da prevenção do suposto tédio que o espectador possa sentir sem ela. Uma espécie de “medo da morte” do documentarista, que junta à banda-som notas da sua flauta domesticadora. Dizia Rouch a esse respeito, que deixou de utilizar música de acompanhamento, quando ouviu um chefe de caçadores de hipopótamos do Niger criticá-lo por ter adicionado música a uma cena de caça a esses animais.

[15] Tal como as obras documentais “The Thin Blue Line” (1966), de William Friedkin, e “Eyes” (1971), de Stan Brakhage.

[16] “Pour la suite du monde” é o primeiro de uma trilogia de Perrault sobre Île-aux-Coudres. Os documentários seguintes foram “Le règne du jour” (1967) e “Les voitures d’eau” (1968).

[17] Com Richard Leacock, D.A. Pennebaker em “Brussels Loops”, de 1957 (com registos do quotidiano dos E.U.A.; apresentado na Expo de Bruxelas de 1958), e outra vez com Pennebaker, mas também com Albert Maysles, em “Opening in Moscow”, de 1959 (em que se filmaram espectadores de uma exposição na capital da U.R.S.S. sobre o “american way”).

[18] Uma característica presente, ao longo da década de 60, em filmes nomeadamente políticos de carácter confrontacional.

[19] Nos Estados Unidos, as leis dos direitos civis são de 1964, mas o direito ao voto apenas se fixa em 1967, um ano depois da rodagem deste filme.

[20] Kazimierz Karabasz foi um grande doutrinador e praticante do cinema directo (logo em 1960, com “Muzykanci” (“Músicos”)). Bossak, com Leacock, foi homenageado por Wildenhahn no seu documentário “Ein Film für Bossak und Leacock” (1984).

[21] O próprio autor deste documentário aparece perante a câmara (Wildenhahn conciliava realização e captação de som, como Frederick Wiseman). É ele a quem se dirige o homem que diz: “Não vos posso pedir que não ponham na televisão.”

[22] Expressão utilizada por Harun Farocki, que admirava Wildenhahn, para se referir à posição que este procurava para colocar a câmara, de forma a captar os acontecimentos.

[23] Como no filme de Shirley Clarke desta sessão, que acaba com Jason dizendo, “Oh, isto foi lindo. Estou feliz com tudo isto.”, também “Noite de Natal em St. Pauli” é uma maratona que termina com uma declaração de felicidade de quem tem a câmara apontada.